Livro de Joseph Frank é mais que uma biografia de Dostoievski

Ao contar a vida do escritor russo, o crítico norte-americano transcende o gênero e situa o autor em seu tempo

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Por Flávio Ricardo Vassoler
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Em Dostoievski: Um Escritor em seu Tempo, a Companhia das Letras traz, em um único volume, a biografia do autor russo pelo crítico norte-americano Joseph Frank (1918-2013) que, originalmente, contava com cinco tomos publicados pela Edusp: Dostoievski: As Sementes da Revolta, 1821-1849; Os Anos de Provação, 1850-1859; Os Efeitos da Libertação, 1860-1865; Os Anos Milagrosos, 1865-1871; O Manto do Profeta, 1871-1881. Além da biografia escrita por Frank, a editora lança pelo selo Penguin Classics dois livros de Dostoievski: Noites Brancas e O Eterno Marido.

Dostoievski: biografia de Joseph Frank é referência essencial Foto: Vassili Gregorovic Perov

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Referência essencial para quem se interessa pela obra de Dostoievski, Joseph Frank transcende o gênero biográfico para, como pontua o subtítulo, situar o escritor em seu tempo. Frank estabelece um panorama do campo cultural russo no século 19, de modo a revelar as profundas interfaces entre a influência literária, política e filosófica oriunda da Europa Ocidental e as reconfigurações autóctones que foram erigindo a intelligentsia russa da qual Dostoievski foi uma das principais vozes.

É assim que Frank nos revela a importância das literaturas inglesa (sobretudo Shakespeare, Walter Scott e Dickens); francesa (o Marquês de Sade, Balzac e Victor Hugo); e alemã (Goethe e Schiller) para a formação de Dostoievski e seus pares. Vale frisar, ademais, a influência que a literatura fantástica exerceu sobre Dostoievski: em 1861, o autor escreveu um prefácio para uma edição russa dos contos do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), considerando-o menos dúbio e mais materialista do que o escritor alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822), para quem o fantástico expandia os limites da realidade a ponto de o sobrenatural desvelar a essência do real. Nesse sentido, Frank argumenta que, para o imaginário de Dostoievski, o universo sobrenatural de Hoffmann prenuncia Cervantes (1547-1616) e seu Dom Quixote, cuja nobreza onírica e cristã municiaria o Príncipe Mishkin, protagonista do romance O Idiota (1869), para quem, em uma versão dostoievskiana da luta quixotesca contra os moinhos de vento, “a beleza salvará o mundo”. 

Frank enfatiza o duelo encarniçado no seio da intelligentsia russa, cujos extremos eram constituídos, à esquerda, por revolucionários ocidentalistas, municiados pela filosofia alemã (sobretudo a partir de Hegel, Feuerbach e Max Stirner) e pelo socialismo utópico francês (sobretudo a partir de Fourier e Proudhon), e, à direita, por eslavófilos defensores da monarquia czarista. A peculiaridade de Dostoievski, analisada à luz de sua época, reside no fato de que a vida e a obra do escritor realizam uma síntese improvável entre tais extremos para compor um legado que acompanha e ressignifica suas contradições.

O ápice dramático do livro de Frank se dá quando o crítico discorre sobre a iminência de fuzilamento, em 1849, dos membros do Círculo de Petrachevski, um grupo revolucionário que propugnava pela abolição da servidão e, no limite, pela derrubada do czar e o estabelecimento de uma república socialista na Rússia. Dostoievski e os demais companheiros de Petrachevski teriam sido fuzilados não fosse a comutação da pena decretada por Nicolau I (1796-1855): com o sadismo de um déspota absoluto, o czar reverte a pena capital em longos anos de trabalho forçado em um presídio na Sibéria quando as armas já estavam engatilhadas. A experiência escatológica marcaria Dostoievski até o fim da vida e seria recriada em Crime e Castigo (1866) e O Idiota (1869). 

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Segundo Frank, a década siberiana foi fundamental para a transformação ideológica de Dostoievski. Entre os prisioneiros que o escritor retrataria em Recordações da Casa dos Mortos (1862), Dostoievski não só questionou a viabilidade das ideias ocidentalistas de emancipação social como aguçou ainda mais seu tino psico(pato)lógico para as sutilezas da alma humana que entrelaçam egoísmo e altruísmo, prazer e dor, Eros e Tânatos. 

Quando do retorno de Dostoievski aos círculos literários, no início da década de 1860, o autor passaria a manter uma tensa relação com a intelligentsia revolucionária, chegando a entrever o cristianismo russo e o trabalho comunal da terra, sob o cetro do czar, como um antídoto para o niilismo próprio ao individualismo capitalista do Ocidente. 

A imagem de Dostoievski como um amálgama das tendências mais antípodas da sociedade russa desponta no velório do escritor, em janeiro de 1881: Frank nos conta que eslavófilos, czaristas e clérigos ortodoxos, à direita do caixão, cerraram fileiras com republicanos, socialistas e anarquistas, postados à esquerda. É como se o espectro de Dostoievski rondasse a Rússia para colocar em diálogo vozes que, em 1917, colidiriam frontalmente.  * É dout0r em Letras pela USP com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA)

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