“Nunca pensara no suicídio a não ser com o juízo alterado por ideias alheias. Agora aceitava-o não resignado, mas alegre. A libertação!” (Uma Vida). “Sou o médico de quem às vezes se fala neste romance com palavras pouco lisonjeiras. Quem entende de psicanálise sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica” (A Consciência de Zeno). “Mario Samigli era um literato de quase 60 anos. Um romance que ele havia publicado quarenta anos antes poderia ser considerado morto se neste mundo também soubessem morrer as coisas que jamais estiveram realmente vivas” (Uma Gozação Bem-Sucedida).
As três citações de livros de Italo Svevo (1861-1928) estruturam-se sobre o mesmo conceito: a autodepreciação. Há sutis gradações, no entanto. Na primeira, nota-se o desespero e a angústia do protagonista, que só consegue ser feliz se matando. Na segunda, o personagem se deprecia mas parece resignar-se a seu papel secundário. Na terceira, visto na terceira pessoa, o protagonista francamente parece glorioso em sua mediocridade. Todos são os mesquinhos, vis e medíocres personagens de Svevo, cuja grandiosidade reside justo na capacidade extraordinária de dar voz ao ordinário. Svevo tinha um dom notável em psicanalizar essa espécie de narcisismo às avessas. Sua leitura é muito apropriada aos tempos de campeonato de curtidas na internet, quando nossos conhecidos parecem, diria Pessoa, “campeões em tudo”.
Foi um longo percurso o de Svevo até chegar ao Mario Samigli de Uma Gozação Bem-Sucedida, noveleta de 113 páginas editada com capricho pela Carambaia (projeto gráfico de Elisa von Randow). Uma Vida, publicado quando o triestino de ascendência germânica tinha 31 anos, narra as viscissitudes de Alfonso Nitti, modesto bancário que se apaixona pela filha do dono mas não consegue abandonar sua obsessão pela mamma. O livro não foi quase notado. Destino parecido com o de Senilidade, de 1892, estrelado por Emilio Brentani, notório corno-manso que não sabe lidar com a mulher infiel (deu em um belo filme com a infernale Claudia Cardinale, Desejo Que Atormenta).
Como ninguém deu bola para o par de livros protagonizados por losers, Svevo ficou na dele, escrevendo nas horas vagas enquanto trabalhava na empresa de tintas do sogro (teve uma infância confortável até que o pai perdeu tudo e Svevo precisou se empregar num banco). O que o salvou do anonimato foi a amizade com James Joyce – que à época dava aulas de inglês na Berlitz de Trieste. Joyce encantou-se com a prosa do amigo e o incentivou a voltar à escrita. Induzido pelo autor de Ulysses e largamente influenciado pelas ideias de Freud, que então começava a divulgar a psicanálise, Svevo passa anos escrevendo sua obra-prima, A Consciência de Zeno. Memórias do bem-sucedido empresário Zeno Corsini ditadas com humor para seu analista, o romance na verdade se compõe de fracassos: o casamento com a mulher que não escolheu, o trabalho entediante, as tentativas de parar de fumar (aliás, o último pedido de Svevo, que estava no hospital por conta de um atropelamento, foi um cigarro – mas o médico o negou). Também não fez sucesso. Svevo morreu bem de vida porém no ostracismo literário.
Deixou muitos inéditos, como esta noveleta, que, como seus outros livros, é um minucioso estudo de personagem à luz do binômio sucesso/fracasso. O sessentão Mario leva uma existência fosca, sem maiores acontecimentos: trabalha em um escritório comercial redigindo cartas cheias de adjetivos e vive com o irmão doente, a quem lê o livro que escreveu 40 anos antes, Uma Juventude. Mario crê que o livro é uma obra-prima e influenciou toda a literatura que veio depois – e seu irmão sempre concorda. Este é um dado curioso da personalidade de Mario: embora medíocre, acredita-se glorioso, tão importante que, no entanto, decide cobrir sua existência com o manto da humildade. Ou seja, vive a vida com o desdém pelo que dizem dele os outros, tão em alta conta se tem. Contudo, sua segurança emocional – falsa, já que sofre de pesadelos horríveis e passa a noite chorando – será abalada por um boato.
No escritório de Mario, o caixeiro-viajante Enrico o inveja por sua altivez literária, e resolve passar-lhe um trote: inventa que um editor alemão tinha vindo a Trieste só para comprar os direitos de Uma Juventude, e o faz assinar um contrato no valor de 200 mil coroas. Os eventos tomam um rumo inesperado conforme o trote de Enrico cai na boca do povo.
Divertido estudo sobre o narcisismo, a vaidade e o mecanismo que faz uma personalidade se construir à luz (ou à sombra) de seus semelhantes, a novela é pontuada pelas fábulas que Mario cria para contar ao irmão doente, protagonizadas por moscas ou pássaros. Uma delas finaliza com uma frase que soa muito atual, quando lida em confronto com os tribunais das redes sociais: “Ousas criticar um animal só porque não é igual a ti?”
*Ronaldo Bressane é jornalista e escritor, autor de 'Sandiliche' (Cosac Naify) e 'Mnemomáquina' (Demônio Negro)
Uma Gozação Bem-Sucedida Autor: Italo SvevoTradução: Davi PessoaEditora: Carambaia 113 páginas R$ 49,90
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