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Livro inédito do poeta Donizete Galvão, morto em 2014, é publicado

'O Antipássaro' revela a dimensão kafkiana desse importante poeta mineiro

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Por Sérgio Medeiros

O poeta e jornalista mineiro Donizete Galvão residiu durante muitos anos em São Paulo, onde faleceu em 2014, aos 58 anos de idade. Deixou um livro inédito, O Antipássaro, que só recentemente foi publicado, com organização de Paulo Ferraz e Tarso de Melo. Contém poemas inéditos e outros antigos, que saíram numa revista e numa plaquete artesanal. O conjunto revela a dimensão kafkiana desse importante poeta, cujos livros serão em breve reunidos num único volume, conforme informam os organizadores do livro póstumo.

O escritor Donizete Galvão, morto em 2014, que deixou um livro inédito, 'O Antipássaro' Foto: Anna Lívia Donizete

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O antipássaro do título talvez seja menos um símbolo do que uma alusão ao rápido voo rasante sobre lugares infames (“ferimos a terra com os cascos / entre balas e incêndios”, segundo Os Eleitos). Os poemas tematizam a vida na metrópole, num tom que oscila entre o sarcasmo e a delicadeza, explorando metamorfoses que poderiam ser chamadas de kafkianas. Os labirintos do mestre checo também estão nos versos, construídos em geral com boa dose de humor. Assim, no poema de abertura, Mesa de Bar, o passeio pelo centro de São Paulo não se conclui, pois o “taxista erra a entrada” (ou a saída), mas, apesar disso, acaba-se acreditando que a “vida seria boa / se este táxi rodasse / rodasse horas / e só parasse para / o passageiro se reabastecer / de bebida em outra mesa”. 

A seguir, no poema O Mijão, esse estado de quem atravessa a cidade como um “pássaro bêbado”, cujas asas são um motorista incauto, indo de bar em bar, redunda na cena em que se demarca zelosamente o território como um cachorro; fala-se então francamente do ato necessário de aliviar a bexiga, mas não no banheiro, porém nos marcos que definem o labirinto noturno do poeta: “nos monumentos, / nos prédios neoclássicos, / nos shoppings e avenidas”. Nessa poesia dos seres ínfimos (“eu sou muito pequeno”, segundo Carta), a noite é também o universo dos “bueiros, forros, caibros, pontes”, pois, em determinado momento, adota-se a perspectiva do morcego, o “pássaro falhado” que é definido como um rato e cujas mãos são asas; tem-se a monstruosa condensação de imagens, que nunca redunda numa metamorfose completa. Esse é igualmente o estado da temível harpia, uma “pássara” imaginária com rosto de mulher e corpo de abutre que fura “com o bico a veia do pescoço e o fígado”, como se lê nos versos em sua homenagem. 

Perceber o mundo da perspectiva do cachorro e do morcego é apenas uma das metamorfoses por que passa quem está no centro do labirinto paulistano (não há outro cenário no livro), a partir do qual, como se percebe, não se farão mais voos poéticos por cenários celestiais, ainda que os cachos púrpuras dos ipês e os cachos amarelos das acácias explodam na calçada. Percebidos nas regiões de tráfico intenso, os cones também experimentam súbita modificação, pois começam a proliferar como bichos coloridos quando são cultivados por “taxistas, guardadores de carros e pela companhia de trânsito”, a fim de poderem exercer com eficácia sua função na vida urbana. Não são diferentes das caçambas, que parecem igualmente adquirir “alma”, mas enquanto os cones se alimentam de monóxido de carbono, as últimas devoram as memórias das famílias, quando, deixadas na rua, se põem a absorver insaciavelmente azulejos e tijolos quebrados.

Além disso, a música da língua se degrada às vezes até soar apenas como um zumbido, o qual é chamado de “cantilena minimalista”. Todas as falas, então, e até a poesia mais sonora, pode-se acrescentar, estão sujeitas a transformar-se em canto de grilo e de cigarra, neste outro labirinto que é o ouvido: “Traz alguma / coisa de mecânico. / De válvulas, / de rádio sem sintonia, / de geladeira. / É um demônio / que assobia / uns desatinos / na noite do insone”.

Com inegável eficácia, o poeta adentra finalmente, no poema Língua-mãe, na seara da metalinguagem, para tentar extrair, talvez, uma lição desse emaranhado de metamorfoses que é, no fundo, simultaneamente a própria poesia e o modo de vida do poeta; contudo, paradoxalmente, o que vemos não deixa de ser uma prisão: o antipássaro está confinado na gaiola da bebedeira, seja degustando cerveja, seja sugando sangue ou as flores. Por isso, pôde declarar que, no fundo, detesta poesia, sobretudo o “poema alado”, cuja suposta doçura lhe dá azia. Numa estrofe em que se dirige à própria poesia, o seu percurso é novamente apresentado como um erro, um desvio de rumo: “por mais que tente / ninguém chega perto de ti / poesia”. Assim, o livro termina com o diagnóstico da irreparável solidão do poeta, “que vem desde o cordão umbilical”.

*Sérgio Medeiros é poeta e ensaísta. Publicou, entre outros livros, A idolatria poética ou a febre de imagens (191) e Trio pagão (2018), ambos pela editora Iluminuras.

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