As peregrinações de Viktor Chklóvski (1893-1984 – escritor e teórico literário que há alguns anos vem sendo reavaliado (enaltecido) pela crítica – por Petersburgo, Galícia, Pérsia, Sarátov, Kiev, Petersburgo, Dnieper, Petersburgo, Berlim, entre 1917 e 1922 (o roteiro é dado por ele mesmo), realizam-se ao longo de dois eixos – o das lembranças e o da atualidade (um esboço de diário) – que por vezes se interceptam, fazendo com que a ação seja submetida a curiosas digressões instantâneas. Tanto o título Viagem Sentimental, como o método (retardamento, flash back, digressões, associações irônicas) aludem à obra do escritor e clérigo anglicano irlandês Laurence Sterne, principalmente A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (1759), que tanto inspirou também nosso Machado de Assis. É para esses deslocamentos temporais e factuais e para a perspectiva cambiante que eles provocam que o leitor deve estar preparado, para apreciar devidamente esta Viagem, onde os fatos imperam, narrados num estilo conciso, quase telegráfico, e que – apesar de descreverem episódios terríveis dos anos da 1.ª Guerra, da Revolução Russa, da Guerra Civil e, finalmente, do Exército Vermelho – não deixam de ter seu lirismo e sua graça, mesmo que macabra: “Um soldado que me contava um linchamento exprimiu-se assim: ‘Então o morto falou...’ ‘O morto falou, como assim?’ ‘Sim, aquele que iam matar de qualquer jeito, falou...”
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Historicamente, são três os livros que se sobrepõem nessa Viagem. O primeiro, Revolução e Front, é redigido em 1919 e cobre o ano de 1917, quando Viktor servia como instrutor e reparador de carros blindados e participava, como comissário de guerra, do Governo Provisório, que tinha Kerenski como ministro da Guerra. Nesses últimos meses da participação da Rússia na 1.ª Guerra Mundial, Viktor viajou para a Ucrânia e para a Pérsia (Irã, a partir de 1934), argutamente descritas, com seus habitantes, nas páginas da Viagem. É na Pérsia que ele conhece Lazar Zervantov, comandante de bateria nascido na Assíria (região do alto rio Tigre, no norte da Mesopotâmia – atual norte do Iraque) que se torna uma personagem heroica no final da Viagem e com quem Viktor assina o Epílogo: final do livro Revolução e Front. E é na Pérsia que Viktor fica sabendo da Revolução de Outubro que, num de seus primeiros atos, encerra a participação russa na 1.ª Guerra e desocupa militarmente a Pérsia. (Os velhos rancores entre turcos, assírios, curdos e persas renascem, com isso, e todos combatem contra todos, até que os assírios fogem, rumo a Bagdá, abandonando mulheres e crianças, contará Lazar, no fim da Viagem).
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Após a dissolução da Assembleia Constituinte, em janeiro de 1918, Chklóvski apoia o partido Socialista Revolucionário (S.R.), mantendo-se fiel a Kerenski – que descreve cruamente, juntamente com tantas outras figuras – e se envolve na frustrada revolução antibolchevique do verão de 1919. Com a descoberta do plano, muda-se para Sarátov onde escreve ensaios literários que irão compor seu livro já clássico, Sobre a Teoria da Prosa (publicado em 1925). De volta a Petersburgo (na época, Petrogrado), casa-se com Liússia, a quem dedica a Viagem, e passa a lecionar no Instituto da História da Arte. De 1920 a 1922 participa do Opoiaz, círculo dos formalistas e futuristas petersburguêses, faz parte da redação do periódico Lef (Front de Esquerda da Arte) e discute sobre a Escola Formalista que, perseguida pelo “Realismo Socialista”, ele haveria de renegar, em 1930.
Em fevereiro de 1922, é publicado, em Berlim, um panfleto de um antigo participante do S.R. citando seu nome. Em março Viktor é procurado e foge rocambolescamente para a Finlândia.
Dois meses depois, começa a escrever Escrivaninha que, juntamente com trechos do Epílogo, forma a segunda parte da Viagem Sentimental, terminada em Berlim no começo de 1923.
O aporte de Chklóvski , em termos de literatura, é bastante curioso. Deve-se saber (conforme explica no posfácio Galin Tihanov), que – em 1919 – ele participou de um projeto de Maksim Gorki, em Petrogrado, chamado “Literatura Universal” que, além dos clássicos ocidentais, propunha-se a traduzir para o russo obras da literatura asiática, do Oriente Médio e da América Latina. (do projeto participavam grandes nomes, como I. Zamiatin, N. Gumiliov, K. Tchukovski, etc.).
Só que Chkóvski, por ser monolíngue, nada traduziu, mas foi incumbido por Gorki de dar palestras sobre teoria literária a um público jovem, com quem analisou o fenômeno do “estranhamento” (ou desfamiliarização) nas obras de Cervantes e de Laurence Sterne, no nível da composição (e não da linguagem, pois trabalhava com obras traduzidas, e isso o contrapôs a Roman Jakobsson que trabalhava principalmente no nível da linguagem original). Nessas obras e nas de Tolstoi levantou dezenas de procedimentos que descreveu, depois, em seu famoso livro Sobre a Teoria da Prosa, onde há uma série de outros ensaios sobre construção literária. São esses procedimentos que ele utiliza em Viagem Sentimental, como dissemos, de seu próprio jeito, muitas vezes irônico ou paradoxal. Nos paralelismos, veja-se o tipo de comparação à qual ele recorre: “Percorri toda a estrada de Uchnué a Petersburgo junto com soldados fugitivos, rato malhado.” Ou então: “A massa agia como os arenques ou as carpas na iminência de desovar...”
Nas digressões, então, o estranhamento é maior ainda. Algo como o que os russos jocosamente definem como “Diádia v Kíeve, a na ogaródie buziná” (O tio está em Kiév, mas a sorva está na horta): “...Se então nos tivessem perguntado: ‘Com quem estão, afinal? Com Kornilov, com Kaledin ou com os bolcheviques?’ Task e eu teríamos escolhido os bolcheviques. À pergunta: ‘ Preferes ser enforcado ou esquartejado?’ Arlequim responde: ‘Prefiro sopa’.”
De volta à URSS, dedica-se a livros de memórias (Zoo, ou Cartas Não Sobre o Amor (1923) e A Terceira Fábrica (1926) e trabalha como editor de filmes e roteirista. “Durante o período stalinista tive muitos aborrecimentos, mas não fui nunca detido; creio que é porque eu já havia escrito tudo sobre mim em Viagem Sentimental – ironiza ele – e não havia mais nada que pudesse ser descoberto a meu respeito”. Escreve copiosamente até o fim, reavaliando seus escritos da juventude e destacando-se no estudo sobre Serguei Eisenstein. Em 1956 casa-se novamente e, três décadas depois, morre em Moscou, com 91 anos de idade.
*Aurora Bernardini é professora de pós-graduação em literatura russa na USP
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