Este é um livro surpreendente, pelas informações que traz e pela abrangência das questões tratadas: Línguas Indígenas – Tradição, Universais e Diversidade, escrito pela professora Luciana Storto, linguista da Universidade de São Paulo. Sob a aparência, à primeira vista, de obra com intenções didáticas restritas, ou destinada quase com exclusividade a leitores especializados, a autora apresenta ao leitor, nas entrelinhas e na concepção geral, uma longa reflexão sobre línguas indígenas do norte do país, sua surpreendente criatividade linguística com a proliferação de idiomas que vão se multiplicando de maneira impressionante no tempo e no espaço.
Além disso o leitor encontrará aí exemplos de gramática utilizada por eles para construir seus sistemas de comunicação oral e, também, a expressão poética da ritualística, sua terra de origem.. Ela, seus colegas e alunos desenvolvem projetos diversos de pesquisa e também didáticos na região, como o plano de alfabetização e a respectiva competência da escrita de seu próprio idioma. Isso não é inédito, porém talvez nunca seja demais destacar a importância do esforço desenvolvido pelo grupo de linguistas.
Em suma, a autora produziu uma obra que ao mesmo tempo atinge finalidades de ensino na formação de professores, como traz informações básicas e muito interessantes sobre os processos da cultura, ou das culturas indígenas, sob a bandeira primordial de que o exercício do ensino deve obedecer, antes de mais nada, ao respeito pela identidade das pessoas com quem se trabalha. Isso implica que o professor, no ponto de partida e chegada assuma a atitude de humilde aprendiz. Ou seja, o primeiro passo é aprender com seus alunos a fim de estabelecer um sistema de troca que resulte na construção de algo comum e ao mesmo tempo independente. Quer dizer: formar, a partir da cultura de origem – e não impor padrões de uma cultura supostamente dominante ou superior – o que resulta disso é um processo de conhecimento sempre recíproco, entenda-se, os resultados devem ser positivamente bilaterais, pelo menos. Quem forma, ao mesmo também se forma, desculpem o lugar comum meio esquecido.
Os formandos deverão aprender a utilizar a própria cultura numa cultura estranha, utilizando as novas ferramentas em função dos valores próprios, alheios. Resultado ideal: a conquista de um território autônomo que é a ciência do próprio idioma, permeável aos demais idiomas que o cercam, mas com a capacidade de assimilá-los à própria língua, incorporando o conhecimento externo, tornando-o “seu”, de um modo inteligível, numa estrutura que lhe pertence e tem características únicas, capilarmente permeadas de vibrações universais, caminho de entendimento e respeito pela alteridade. Não se trata de uma conquista no sentido impositivo, mas de comunhão, de parceria que tem um limite paradoxal: o ponto de rompimento das barreiras, ou seja, da libertação de ambas as partes. É a lição da mestra, que sintetiza a própria experiência e a de seus pares.
Para que se tenha ideia da amplitude e complexidade do trabalho teórico e de campo, pode-se lembrar a existência de 154 línguas americanas distintas no País.”Há atualmente 230.000 falantes de línguas nativas brasileiras de acordo com estimativas” do pesquisador Denny Moore, linguista e antropólogo estadunidense, com quem já trabalhou. Enquanto a população indígena chegava em 2011 a 485.576, segundo o mesmo pesquisador e 896 mil, de acordo com o censo do IBGE de 2010. A diferença entre o número de idiomas e seus falantes revela a extensão do problema e dos desafios implícitos e explícitos. Luciana Storto cita o linguista Aryon D’all Igna Rodrigues: segundo ele, “75% das línguas indígenas faladas em território nacional tenham desaparecido em 500 anos de colonização”, incluindo-se os brasileiros nessa história iniciada pelos portugueses neste país. Cada língua que desaparece leva o mundo todo com ela.*MOACIR AMÂNCIO É AUTOR DE ‘ATA’ (REUNIÃO DE POEMAS, RECORD), ‘MATULA’ (POESIA, ANNABLUME), “YONA E O ANDRÓGINO – NOTAS SOBRE POESIA E CABALA” (ENSAIO, NANKIN/EDUSP), ENTRE OUTROS LIVROS
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