Entre outubro de 1912 e abril de 1916, os escritores portugueses Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro travaram uma ardorosa correspondência e armaram um jogo de espelhos. Sá-Carneiro, que estava em Paris sob o pretexto de retomar os estudos jurídicos, escrevia febrilmente sobre o trabalho dos amigos enquanto aguardava, ansioso, a avaliação de Pessoa sobre sua própria poesia. E este, em Lisboa, via no amigo a visão de si próprio no espelho do outro, pois, como bem observa o poeta Régis Bonvicino, Sá-Carneiro tornou-se a face menos visível de Pessoa. É essa vigorosa troca de opiniões, que serviria de base para o modernismo português, que compõe o livro Correspondência com Fernando Pessoa (464 págs., R$ 53), lançado pela Companhia das Letras nesta semana. Organizado pela pesquisadora Teresa Sobral Cunha, o volume é o mais completo inventário das cartas trocadas pelos dois poetas que se tem notícia. Infelizmente, da correspondência, o que mais sobrou foram textos assinados por Sá-Carneiro. A justificativa mais aceita é que, em 1916, quando Sá-Carneiro, atingido pelo desespero, tomou uma dose fatal de estricnina em um dos quartos do hotel de Nice, onde estava hospedado, deixou os pertences em uma mala. Esta, que guardava seus bens (e certamente as cartas escritas por Pessoa), desapareceu misteriosamente, provavelmente como penhor de sua dívida ao proprietário do hotel. Assim, sobraram apenas cinco cartas dirigidas por Pessoa a Sá-Carneiro. O material resgatado, no entanto, revela uma inestimável valia. "Esta correspondência redige parágrafos da história literária e congrega numerosas páginas sobre a arte e a cultura do princípio do século (que são ainda seminais dos dias nossos contemporâneos)", escreve Teresa, na introdução da obra. De fato, em Paris, Sá-Carneiro presencia toda uma ebulição cultural, em que os conceitos artísticos sofriam a contestação dos movimentos de vanguarda, especialmente o cubismo de Picasso, o futurismo de Marinetti e o dadaísmo de Tristan Tzara. Mas, mesmo no centro de tantas transformações, Sá-Carneiro continuava voltado para sua terra, ligado tortuosa e psicologicamente a um passado indefinido que o fazia sofrer muito. "Tenho vivido ultimamente alguns dos dias piores da minha vida", escreve ele, a 12 de novembro de 1912. "Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados, afiguram-se-me hoje áureos, suaves e benéficos." Essa tendência depressiva vai se acentuar à medida que Sá-Carneiro ensaia projetos de contos e poemas, alguns detalhadamente explicados nas cartas enviadas a Pessoa. A intimidade entre os poetas permite que ambos desenvolvam uma preocupação acentuada com as particularidades do estilo. Com uma matéria-prima que era a sensação, as "maneiras de sentir" e o próprio sentimento ("De que cor será sentir?", interroga Pessoa), a correspondência entre os poetas apresenta o esboço do corpo teórico de uma escola literária. Da amizade entre Pessoa e Sá-Carneiro surgiu, provavelmente em 1916, o sensacionismo, movimento que pregava que as sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objeto que seja sensação para os outros. E dessas sentenças surgia um caminho que se revelaria decisivo para a poesia moderna: "A única realidade em arte é a consciência da sensação." Foi na troca de sentimentos também que Pessoa descobriu o arco evolutivo de seus heterônimos, especialmente o de Alberto Caeiro, que carrega marcas características de Sá-Carneiro, como observa Teresa Sobral Cunha, a exclusiva crença na plástica verdade dos sentidos, o idealismo antimetafísicos e o particular uso da sensibilidade e da emoção que o impeliram a criar uma realidade diferente. Sem arrogância, os poetas sabiam da importância dos conceitos que trocavam em cartas, ou seja, que estavam diante de formas literárias inovadoras que permaneceriam mesmo depois de suas mortes. Não é à toa, portanto, que Sá-Carneiro reitera, citando Pessoa, em 14 de maio de 1913: "Afinal estou a crer que em plena altura, pelo menos quanto a sentimento artístico, há em Portugal só nós dois." A intensidade das cartas cresce à medida que se aproxima o fim premeditado de Sá-Carneiro, que se suicidou aos 26 anos, levando às últimas conseqüências as crises psíquicas e espirituais vividas por ambos. Neste final, Pessoa revela-se e apóia-se em Sá-Carneiro, no espelho de si próprio que lhe falta. Momento singular que Pessoa traduziu nos versos: "Hoje, falho de ti, sou dois a sós."
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