Livro reúne entrevistas e artigos do crítico Roberto Schwarz

'Seja Como For' refaz o percurso intelectual de meio século de produção acadêmica

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Por Flávio Ricardo Vassoler

Seja como For (Editora 34), livro de artigos, entrevistas e documentos, homenageia os 50 anos da trajetória intelectual do crítico literário e professor Roberto Schwarz, cujas obras sobre Machado de Assis – Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro (1977) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990) – contribuíram sobremaneira para a fortuna crítica do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).  Roberto Schwarz estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e fez suas pesquisas de mestrado, na Universidade de Yale (EUA), no início da década de 1960, e de doutorado, na Universidade de Paris III, na primeira metade da década seguinte. Entre 1963 e 1968, foi professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, em meio ao departamento então recém-fundado pelo professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), intelectual que exerceu fundamental influência sobre Schwarz. Com o recrudescimento da ditadura no Brasil a partir da implementação do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), em fins de 1968, o marxista Roberto Schwarz decide sair do país. 

O crítico literário Roberto Schwarz Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Antes de dar início a seu doutoramento na França, Schwarz estabelecera uma breve troca de cartas – documentada em Seja como for – com o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), autor ligado à Escola de Frankfurt, cujos estudos seminais sobre a imbricação entre estética e história, forma literária e processo social seriam decisivos para a composição das obras de Schwarz sobre Machado de Assis. No prefácio de Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, Schwarz revela que seu trabalho “seria impensável sem a tradição – contraditória [isto é, dialético-materialista] – formada por Lukács (1885-1971) [filósofo e crítico literário húngaro], Benjamin (1892-1940) [ensaísta, filósofo, crítico literário e tradutor alemão], Brecht (1898-1956) [poeta e dramaturgo alemão] e Adorno, e sem a inspiração de Marx (1818-1883)”. Quando de seu retorno ao Brasil, Schwarz lecionou Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 1978 e 1992. 

Quiçá uma das contribuições mais instigantes de Roberto Schwarz para apreendermos tanto as contradições histórico-sociais brasileiras que Machado de Assis tão bem soube desvelar quanto as tendências e tensões do Brasil contemporâneo seja o conceito de “ideias fora de lugar”. Para ilustrarmos tal dimensão irônica e trágica do processo de (de)formação do Brasil, pensemos, por exemplo, na leitura schwarziana da trajetória – ou, por outra, das peripécias – do (anti-)herói Brás Cubas, o defunto-autor que nos legou suas Memórias póstumas

Filho dileto da elite brasileira do século 19, o eloquente Brás Cubas, político já empossado, faz discursos em prol do caráter emancipatório do liberalismo político e econômico, a coqueluche ideológica então em voga na Europa. Enquanto tece odes à ética do trabalho e ao progresso trazido pela indústria, o bon vivant Brás Cubas, que jamais ganhara o pão com o suor do próprio rosto, vai se lembrando, com alívio e cumplicidade, dos escravos de sua casa grande, sobre cujas costas vergadas o proprietário se senta enquanto janta. Para além do descompasso hipócrita entre a defesa retórica da liberdade e a manutenção odiosa da escravidão, a ironia de Machado de Assis, secundada pelas análises de Schwarz, nos permite desvelar progresso e atraso como polos historicamente imbricados da contraditória modernização à brasileira, que, antes de abraçar, muito tardiamente, o trabalho assalariado, logrou aprovar indenizações aos proprietários de escravos, que, com a Lei Áurea (1888), viram-se desfalcados de suas “mercadorias humanas”. Eis a brutalidade das ideias fora de lugar. 

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Os 50 anos da trajetória intelectual de Roberto Schwarz nos fazem discernir, entre alguns (neo)liberais brasileiros contemporâneos, traços de Brás Cubas. Afinal, há quem veja possibilidades de conciliação entre a democracia liberal e a nostalgia mórbida dos porões da ditadura militar. Ademais, não poucos defensores do Estado mínimo sequer se chocam quando portentosas empresas recorrem a isenções fiscais e (re)financiamentos junto a bancos públicos, com juros convenientemente complacentes e prazos de pagamento a perder de vista. Se o Estado mínimo vale, facultativamente, para os de cima, o Estado máximo e policial vale, coercitivamente, para a legião de descendentes dos espoliados por Brás Cubas, os sobreviventes da periferia do nosso capitalismo.

SEJA COMO FOR  AUTOR: ROBERTO SCHWARZ  EDITORA: 34 448 PÁGINAS R$ 72*FLÁVIO RICARDO VASSOLER É ESCRITOR E PROFESSOR, É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY (EUA). É AUTOR DE, ENTRE OUTROS, DOSTOIÉVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO (HEDRA, 2018) E DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA (HEDRA, 2019)

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