Livros reavaliam importância do filósofo francês Gilles Deleuze

Pensador foi importante, entre outras coisas, por unir para sempre a filosofia e a psicanálise

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Por Rodrigo Petronio

O futuro será deleuzeano. Esta afirmação definitiva de Michel Foucault deixou de ser uma frase de efeito. Tornou-se uma profecia que aos poucos vem se realizando. Cada vez mais a obra do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) ganha desdobramentos e ressonâncias. Cada vez mais ele se afirma como um dos maiores pensadores do século 20. Um limiar para a formulação de uma filosofia do futuro. 

Obras de Francis Bacon, amigo de Deleuze e analisado por ele em seus estudos Foto: CRANE KALMAN GALLERY/THE BRIDGEMAN ART LIBRARYY

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Esse fenômeno em torno de Deleuze começou no Brasil por meio do pioneirismo de alguns de seus primeiros tradutores e estudiosos, tais como Peter Pál Pelbart, Valter Rodrigues, Claudio Ulpiano, Luiz Orlandi, Mario Bruno e Suely Rolnik, dentre outros. E agora uma nova safra de publicações parece corroborar o lugar de destaque desse imenso pensador. 

A primeira delas é a reedição de Gilles Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento, de Claudio Ulpiano, um dos mais amplos e verticais estudos sobre Deleuze em termos internacionais. A obra ficou a cargo da Ritornelo, editora ligada ao Acervo Claudio Ulpiano, centro de pesquisa e documentação dedicado à preservação da memória e da obra deste lendário professor e filósofo.  Outros dois livros essenciais de Deleuze saíram do prelo da editora N-1: Nietzsche e a Filosofia e Cartas e Outros Escritos, este último trazendo material inédito e preparação de David Lapoujade. Por fim, a Editora 34 acaba de reeditar os dois volumes que Deleuze dedicou ao cinema: Cinema 1: A Imagem-Movimento e Cinema 2: A Imagem-Tempo. Estes dois clássicos do pensamento audiovisual estavam há anos desmembrados entre as editoras Brasiliense e Martins Fontes. Isso dificultava a circulação conexa e, por conseguinte, a compreensão de sua complementaridade. 

Deleuze é um pensador central do século 20. Um autor que se encontra no cerne de toda filosofia ocidental. Essa centralidade decorre da ousadia de seu projeto: refundar a ontologia (estudo do ser). Fundar uma ontologia da modernidade. Embora a ontologia tenha sido criticada por Kant e considerada morta por boa parte da filosofia moderna, Deleuze segue a contracorrente. Apoia-se em autores como Henri Bergson (1859-1941), Charles Sanders Peirce (1839-1914) e Alfred North Whitehead (1861-1947) e redefine o conceito de ser. Redimensiona os infinitos estratos da realidade.

Dedica a vida não a reativar anacronicamente ontologias antigas e medievais, mas a fundar uma ontologia a partir das funções e descobertas da ciência moderna. Essa nova ontologia se baseia em uma unidade de três vetores: perceptos, afectos e conceptos. A percepção, a afecção e a conceitualização. A primeira seria ligada aos sentires. A segunda se localiza no campo das paixões e das interações entre os corpos. A terceira diz respeito ao pensamento propriamente dito. 

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Para fundamentar esta nova ontologia, paralelamente ao desenvolvimento de uma filosofia autoral, Deleuze perfaz um caminho de extrema humildade intelectual. Dedica-se à tarefa cotidiana de comentar alguns dos principais filósofos ocidentais: Hume, Espinosa, Nietzsche, Bergson, Kant, Leibniz, Foucault. Um livro para cada pensador. 

De maneira complementar, expande de modo vasto o horizonte da filosofia. Passa a concebê-la como atividade geral dos seres, humanos e não humanos. Declina-a em suas dimensões perceptivas, afetivas e abstrativas, e não apenas conceituais. É preciso escrever a geologia do pensamento. É preciso encarnar os conceitos. É preciso descrever o pensamento-mundo. 

Não por acaso essa nova concepção confere um estatuto especial às artes e à literatura. E, por isso, os diversos livros dedicados a escritores e artistas e a importância da arte e da literatura: Proust, Kafka, Sacher-Masoch, Francis Bacon, Artaud. Dezenas de escritores. Dezenas de dramaturgos. Dezenas de artistas. As imagens da arte e da ficção funcionam como linhas de fuga dos conceitos. O pensamento é uma máquina que desfaz, fio a fio, o novelo compacto dos conceitos que a filosofia edificou. 

A filosofia passa a ser entendida também como uma arte: a arte de criar conceitos. E essa arte é a espinha dorsal das obras mais ambiciosas, como Diferença e Repetição, Lógica do Sentido, os dois tomos do projeto Capitalismo e Esquizofrenia (O Anti-Édipo e Mil Platôs) e, finalmente, O que é Filosofia?, estas últimas escritas com Félix Guattari. 

Estes lançamentos recentes são um panorama abrangente para que o leitor acesse essas diversas faces de sua obra. O volume de cartas traz um aspecto mais intimista e ainda pouco conhecido. Destacam-se as cartas endereçadas ao filósofo Clément Rosset e ao poeta Ghérasim Luca. Por meio dessa correspondência apreendemos a descoberta de alguns pensadores matriciais para Deleuze, como a filosofia organicista e processual de Whitehead. O volume traz também algo pouco documentado: alguns desenhos de Deleuze. 

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Os escritos são de juventude. Curiosamente são dedicados a alguns pensadores metafísicos que não costumam figurar no seu cânone, tais como Bréhier, Lavelle, Le Senne. A revelação de autores ignorados pela história da filosofia também é uma tônica da contribuição de Deleuze à filosofia. Aqui temos seu escrito sobre a conceito de matese (saber supremo) na fisiologia de Malfatti di Montereggio (1775-1859). Também conseguimos captar a gênese de alguns interesses ulteriores que vão atravessar toda sua obra. Por exemplo, os cursos e escritos sobre Hume. De modo geral, as cartas e escritos de juventude ajudam a efetuar uma genealogia de seu pensamento.  Falando em genealogia, o livro sobre Nietzsche explora o aspecto de Deleuze comentador. E nem por isso é menos controverso. Como todo grande filósofo, Deleuze se apropria dos conceitos. Interpreta-os com o intuito de criar novos conceitos. O ressentimento, a má consciência, a vontade de potência, os niilismos passivo e ativo. Nenhum conceito é analisado de modo imparcial. É o pensamento mesmo em seu eterno devir que os convoca. O objetivo é criar uma filosofia autoral que se engaje em cada aspecto depreendido da obra alheia. Uma dramatização de figuras. Uma usina de personagens conceituais. 

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Nesse plano de imanência, as formas da sensibilidade são estruturas pensantes. E as paixões são racionais. Por isso, a unidade entre percepções, afecções e conceitos encontra seu ponto alto nas duas obras-primas sobre cinema. São centenas de filmes e centenas de cineastas analisados. O objetivo é criar uma grande tipologia das imagens, tanto do cinema clássico (imagem-movimento) quanto do cinema moderno (imagem-tempo). O plano de imanência (universo) se transforma em plano infinito de signos flutuantes: o filme. 

A Imagem-Movimento se funda nos princípios sensório-motores. O cinema está nascendo, como indústria e como entretenimento. Por isso o seu eixo é a imagem-ação. Em torno dela, organizam-se as imagens-percepção, as imagens-afecção, as imagens-pulsão e as imagens mentais. Desde os irmãos Lumière, Chaplin e Keaton a Eisenstein, Griffith, Lang e Hitchcock, esse mecanismo das imagens conectadas e acionadas pelo drama se mantém funcionando. 

A partir de meados do século 20, sobretudo por conta da produção dos clichês, por meio dos autômatos espirituais e da indústria de massa, ocorre uma inflexão. Não será mais a motricidade a condutora da imagem do cinema. Será a dilatação e a hesitação. A experiência de um tempo-espaço qualitativo, escandido na duração, concebida por Bergson. Os signos óticos e sonoros puros assumem a cena. Essa nova dimensão de espaço-tempo emerge do Aberto. Surge da fenda que se abre no plano de imanência do universo e no plano do filme. Conduz o espectador cada vez mais às dimensões virtuais do extracampo, da latência, do não manifesto. 

Nasce um novo o mundo: o cristal do tempo. A simultaneidade do tempo-espaço encarna imagens-lembrança, imagens-devaneio, imagens-delírio. Traz à tona camadas dos lençóis freáticos da memória. Abre clareiras em direção ao futuro. A atualidade e a virtualidade dos seres se embaralham. A indiscernibilidade real-imaginário é um imperativo. Esse novo olhar-cristal escava as imagens adormecidas sob a opacidade dos clichês. É a era de Antonioni, Godard, Pasolini, Visconti, Tarkovski, Bergman, Resnais.

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Por fim, como diria Deleuze, não podemos falar sobre as coisas. Falamos apenas com as coisas. Por isso, não se deve produzir um discurso explicativo do real e do pensamento. Deve-se atravessar o pensamento-mundo. É isso que Ulpiano realiza em sua brilhante abordagem. Parte de linhas, conceitos, séries, campos de força, linhas de intensidade, imagens e singularidades. Cria assim um mapa das regiões, declives tectônicos e principais planos de consistência dessa obra singular.

A sensibilidade e a erudição de Ulpiano lhe possibilitam não apenas uma fina hermenêutica do texto de Deleuze. Promove uma articulação entre todos os campos e vetores desse pensamento. Mais: convoca os autores e artistas agenciados no texto para essa grande arena de signos. Desse modo, Ulpiano não se restringe a compreender Deleuze. Vive e recria sua filosofia. Cria conceitos a partir de um criador de conceitos. E demonstra que a tarefa do pensamento sempre foi e sempre será a de criar novas realidades, novos mundos e novas figuras de luz. Inclusive e sobretudo quando estamos na escuridão.  *Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Professor titular da Faap, desenvolve pós-doutorado no centro de tecnologias da inteligência e design digital (TIDD/PUC-SP)

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