Responda com sinceridade: algo em sua aparência te incomodou na infância ou na adolescência? Ou te fez sofrer com apelidos e brincadeirinhas em que todos viam graça menos você? Agora imagine descobrir que essa característica que povoa seus antigos traumas virou um novo trend de beleza, digno das páginas do New York Times?
Tomei esse susto esta semana ao ler no jornal americano que milhares de pessoas estão se submetendo a picadas de agulhas embebidas em pigmentos para ganhar sardas no nariz e nas bochechas. Segundo o jornal, o antigo motivo de tormento escolar se tornou a mais recente obsessão do TikTok.
Ao comentar sobre isso com uma amiga, descubro também que é possível encher o rosto com pontos fakes de melanina com ajuda de filtros do Instagram - e depois compartilhar as fotos com quem quiser.
E por que estou falando de algo tão prosaico nesta coluna? Porque eu era uma criança sardenta e odiava as sardas. E odiava os apelidos que ganhava por causa delas. E as brincadeiras. Até os elogios. Uma tia me chamava carinhosamente de “bananinha pintadinha”. Eu sorria amarelo. As amiguinhas perguntavam se podiam contar quantas marquinhas eu tinha nas bochechas. Eu recusava com uma careta. O pior foi quando um colega de escola perguntou se eu costumava tomar sol de peneira. Todos em volta riram e eu só queria me enfiar no chão da sala de aula. Sem imaginar que a mesma pergunta se repetiria depois por muito tempo com diferentes interlocutores...
Crianças podem ser cruéis, especialmente com o que identificam de diferente no amiguinho ou na amiguinha. E naquela época ainda não tinha tanto eco o mantra “precisamos gostar de nós mesmos como somos”.
Uma vez fui reclamar com o meu pai. Tinha certeza de que havia herdado as sardas dele e exigia uma solução para o bullying causado por elas. Rindo, ele disse: ‘Não liga não. Minhas sardas desapareceram quando nasceu a barba’. Lembro de ter pensado: ‘E agora? O que eu faço?’
Quando lançaram os protetores solares fator 50, eu cobria o rosto com eles na esperança de fazer as sardas desaparecerem. Mas ocorria o inverso: a pele ficava protegida, e elas se destacavam ainda mais.
Na ilusão de eliminá-las, passei também a recorrer a soluções caseiras. Como uma pra lá de pitoresca que sugeriram certa vez à minha mãe: seria preciso lavar o rosto diariamente com a segunda água do arroz para eliminar tais “imperfeições”. Ou seja, a água da segunda lavagem dos grãos teria o poder de ir clareando as sardas até sumirem. Uma grande bobagem, descobriria mais tarde. Mas só depois de passar dias lavando o rosto com a tal da água.
Meu drama de cabelo castanho só não era pior que o das crianças ruivas com sardas, chamadas também de “água de salsicha”.
Com o tempo, porém, minha raiva das sardas foi diminuindo. Na exata proporção em que fui amadurecendo e aprendendo a dar menos importância às críticas alheias. Se eu não valorizasse o que literalmente trazia na pele, quem ia fazer isso?
Mas nem nas minhas projeções mais otimistas poderia sonhar com a reviravolta nos padrões de beleza que descobri esses dias, com gente pagando para tatuar o rosto ou fazendo comentários em redes sociais do tipo: “Hoje em dia ter sardas é uma dádiva dos ninjas”.
Seja lá o que for essa dádiva dos ninjas...
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