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Coluna quinzenal da jornalista Luciana Garbin que traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião | China deu reviravolta demográfica com política do terceiro filho. Faltou combinar com as chinesas

Com quedas na natalidade, país tem incentivado ‘cultura do casamento e da procriação’ e ampliado subsídios e benefícios fiscais a quem aumenta a família; desigualdades de gênero e espaço profissional conquistado nas últimas décadas, porém, desestimulam mulheres a ter mais bebês

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Foto do author Luciana Garbin
Atualização:

Abortos, contracepção e esterilizações forçadas, multas por violar regras de controle de natalidade. Por décadas, os chineses tiveram de conviver com as consequências da rigorosa política do filho único, um megaplano governamental adotado nos anos 1980 para desacelerar o crescimento populacional de um dos países com mais gente no mundo. E essas consequências parecem permanecer até hoje, apesar da reviravolta demográfica dada pela China nos últimos anos.

Em 31 de maio de 2021, o governo da nação de 1,4 bilhão de habitantes aumentou para três o número de filhos permitidos por casal. Em 2016, já havia acabado com a política do filho único e ampliado o limite para dois. Essas mudanças vieram acompanhadas de corte de impostos, oferta de subsídios e outros incentivos impulsionados por uma propaganda patriótica que agora prega o dever de se ter mais filhos. Mas essas medidas, ao menos por enquanto, têm sido insuficientes para driblar a queda na taxa de fertilidade e evitar o envelhecimento da poderosa força de trabalho chinesa.

Pessoas passeiam por distrito de Pequim, na China Foto: mehdi - stock.adobe.com

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A China divulgou em janeiro que 9,02 milhões de bebês nasceram em 2023, abaixo dos 9,56 milhões em 2022, no sétimo ano seguido de queda. Considerando o número de pessoas que morreram – 11,1 milhões –, foi o segundo ano consecutivo de diminuição da população, de acordo com o Gabinete Nacional de Estatísticas. Por outro lado, aumentou o envelhecimento no país que já tem recorde de idosos.

Além de a chamada política do terceiro filho ainda não estar surtindo os efeitos desejados pelo governo de Xi Jinping, crescem os alertas de grupos feministas para o risco de medidas de maternidade compulsória. Assim como o debate sobre a desigualdade na divisão de tarefas entre homens e mulheres na sociedade chinesa.

“Limites de nascimento, independentemente do número, são fundamentalmente uma violação dos direitos reprodutivos e da autonomia corporal das mulheres“, escreve a pesquisadora sênior sobre China do Human Rights Watch Yaqiu Wang no artigo It’s time to abolish China’s three-child policy (do inglês, É tempo de abolir a política do terceiro filho da China).

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No texto publicado no relatório Essays on Equality: The Politics of Childcare 2023 (Ensaios sobre Igualdade: As Políticas de Cuidado Infantil 2023), do The Global Institute for Women´s Leadership, do King’s College London, Yaqiu destaca que uma das razões para a relutância das chinesas em ter mais filhos é a desigual carga de responsabilidade em cuidar das crianças e o potencial impacto negativo na carreira.

“Quando a política dos dois filhos estava em vigor – de 2016 a 2021 – um ditado popular descrevia a posição impossível que as mulheres trabalhadoras enfrentavam na China: ‘Se você não teve filhos, os empregadores consideram você uma ‘bomba-relógio extragrande’ prestes a explodir duas vezes (ao tirar duas licenças maternidade). Se você teve um filho, você é uma ‘bomba-relógio’ e provavelmente terá um segundo filho a qualquer momento. Se você já tem dois filhos, deve estar muito ocupada cuidando deles, então não consegue se concentrar no trabalho. Não admira que poucas mulheres queiram um terceiro filho, mesmo agora que podem.”

A autora cita pesquisa feita em 2022 por um site de empregos com mulheres profissionais que apontou que apenas 0,8% das entrevistadas dizia querer ter três filhos e 61% já haviam sido questionadas por potenciais empregadores sobre seu “estado de procriação”. Para 38%, perspectivas de carreira são afetadas negativamente por casamento e criação de filhos, ante 18% dos homens.

Dois anos antes, estudo do Instituto de Estudos da Mulher da China já havia mostrado que 45% das entrevistadas disseram ter tido o emprego afetado negativamente por gravidez ou criação de filhos, mais de um terço havia relatado perda de rendimentos e mais de 20%, perda de oportunidades de formação ou promoção; 13% ainda disseram ter sido demitidas ou forçadas a se demitir.

Um dos principais impulsionadores da discriminação baseada na gravidez é o fato de as empresas não quererem contratar uma funcionária que possa estar ausente durante os três a seis meses de licença maternidade e os custos associados à contratação de uma substituta. Mães na China têm licença parental obrigatória muito mais longa do que os pais – e em algumas regiões os pais não têm nenhuma. Outro fator que sustenta essa realidade são práticas de gênero tradicionais e profundamente discriminatórias: mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos nas famílias e se espera que subordinem aspirações profissionais a obrigações familiares.”

Yaqiu Wang, pesquisadora sobre China

Alguns leitores podem corretamente pensar que isso não é exclusividade da China. Mas uma das diferenças lá é a pressão do Partido Comunista Chinês. “Devemos promover ativamente um novo tipo de cultura de casamento e procriação”, disse Xi Jinping na abertura do Congresso Nacional de Mulheres, no fim do ano passado, acrescentando ser papel das autoridades do partido influenciar opiniões de jovens sobre “amor e casamento, fertilidade e família”.

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Xi Jinping (ao centro), durante Congresso Nacional das Mulheres, realizado em 2023 em Pequim Foto: Xinhua/Yao Dawei

Em agosto de 2022, 17 agências do governo central chinês emitiram um aviso conjunto descrevendo o plano para aumentar a natalidade. Além de ampliar o número de serviços de acolhimento a crianças, pela primeira vez em quase três décadas foi alterada a Lei de Proteção dos Direitos e Interesses da Mulher. Para combater discriminação de gênero no trabalho, a nova legislação proíbe empregadores de investigar o estado civil e materno das candidatas. Apesar de já estar em vigor, especialistas consideram no entanto que sua aplicação tem falhado.

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Também têm pesado notícias de violência contra mulheres e novas regras sociais, como a que exige “um período de reflexão de 30 dias” antes do divórcio. Estatísticas apontam queda de taxas de casamento não só nas zonas urbanas chinesas como também nas rurais e uma das razões apontadas para não querer casar é justamente a maior dificuldade em conseguir o divórcio no tribunal se ele for contestado.

“São passos positivos, mas o governo precisa ir mais longe. Deve desenvolver programas para reduzir as normas discriminatórias de gênero relacionadas às responsabilidades de cuidados infantis, acabar com as políticas discriminatórias de licença parental, expandir as políticas e proteções de licença parental para homens e mulheres que desejam usufruí-la e garantir disponibilidade e acessibilidade de cuidados infantis e outras formas de cuidados profissionais”, enumera Yaqiu.

Precisa ainda lidar com uma mudança cultural cristalizada nas últimas décadas na sociedade chinesa. Reportagem publicada pelo jornal americano The New York Times mostra que, além de ajudar a reduzir a taxa de natalidade ao longo de várias décadas, a política do filho único criou gerações de filhas únicas que receberam educação e oportunidades de emprego e têm nas comunidades online que escapam à censura governamental um canal para se comunicar e trocar ideias. São essas mulheres que agora em boa parte resistem aos esforços de Pequim para que voltem a se dedicar apenas a cuidados do lar. Não basta apenas o governo pedir. É preciso convencer as chinesas.

Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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