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Coluna quinzenal da jornalista Luciana Garbin que traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião | Ela ouviu que mulher não nasceu para cirurgia. E se tornou uma das cirurgiãs mais premiadas do País

Especialista em doenças do intestino, Angelita Habr-Gama enfrentou desafios na família, com colegas e até entre pacientes antes de se tornar referência na Medicina

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Atualização:

Primeira mulher no mundo a receber a medalha Bigelow, distinção dada pela Sociedade de Cirurgia de Boston a cirurgiões com destacada contribuição para o progresso científico, a gastroenterologista brasileira Angelita Habr-Gama lembra-se palavra a palavra do diálogo que teve com um paciente no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo ainda no final dos anos 1950.

- Eu vou ser operado amanhã?

- Sim, você será operado amanhã de manhã.

- E quem vai me operar?

- Eu.

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- Então eu vou embora do hospital.

- Olha, meu amigo, você vai sair perdendo se for embora porque eu sou a melhor cirurgiã que tem aqui.

Mais de seis décadas depois, Angelita ri quando lembra da cena. “Quando eu respondi isso, ele mudou de ideia”, contou, em conversa na Rádio Eldorado. “‘Então eu me opero com a senhora’, ele disse. ‘Porque a senhora é firme’.”

Angelita Habr-Gama, no Centro Cirúrgico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, momentos antes de iniciar mais uma cirurgia em 2020. Foto: Hélvio Romero/ Estadão 

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A mesma firmeza a ajudou também a superar dificuldades com a família de imigrantes libaneses da Ilha do Marajó - que só admitia professoras - e com os colegas que encontraria na Medicina.

“Quando me candidatei para ser residente em cirurgia, o chefe do setor disse: ‘Não, você não pode se inscrever no concurso porque tem poucas vagas e cirurgia é para homens. Mulheres não nasceram para cirurgia’. ‘Mas como não nasceram?’, perguntei. ‘Quem é que prova isso? Eu entrei na faculdade de Medicina, tenho facilidade para cirurgia, não há razão para não fazer’. Depois de muitas discussão, fui aceita para me inscrever no concurso e passei em primeiro lugar.”

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Isso foi em 1957. Desde então, a primeira mulher residente de Cirurgia do HC acumula uma pilha de títulos e prêmios nacionais e internacionais. Autora de centenas de trabalhos científicos, a hoje professora emérita foi a primeira a chefiar os Departamentos de Cirurgia e Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da USP e ajudou a formar centenas de médicos. Mais do que isso, serviu como referência a várias cirurgiãs que também se depararam com episódios sexistas na área.

“Resultados em cirurgia dependem não de gênero, mas de treinamento, estudo, esforço, dedicação. Resultados serão semelhantes se homens e mulheres forem educados desde crianças para disputarem os mesmos concursos e seguirem as mesmas especializações”, defende Angelita.

E o que ela acha sobre pesquisa feita com mais de 1 milhão de pacientes no Canadá que mostra que aqueles tratados por uma cirurgiã tiveram menor probabilidade de sofrer morte, readmissão hospitalar ou complicações médicas graves após 90 dias ou 1 ano da cirurgia?

“De modo geral, as mulheres têm menos pressa de sair do campo cirúrgico e são delicadas na manipulação de órgãos e vísceras. Isso facilita a cirurgia”, afirma. “A característica primordial da cirurgia é a delicadeza, não a força. Cirurgia exige delicadeza, atenção, dedicação e conhecimento.”

Angelita, no entanto, diz não concordar inteiramente com os resultados do estudo canadense. “Acho que isso (ser melhor ou pior) depende unicamente do conhecimento e da dedicação do cirurgião ou da cirurgiã porque, em igualdade de condições, os resultados podem ser semelhantes”, afirma. “Tenho uma equipe com dois colegas e duas colegas e os resultados deles são semelhantes porque são dotados da mesma capacitação e dedicação. Há homens muito cuidadosos e habilidosos e há mulheres do mesmo jeito.”

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Embora os homens ainda sejam maioria entre os médicos brasileiros, dados da Demografia Médica apontam que a proporção de mulheres é cada vez maior. Hoje, 49,1% dos profissionais são do sexo feminino, ante 50,9% do sexo masculino. Em 1990, as mulheres representavam 30% da força de trabalho médica.

Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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