O Google Maps passará em território americano a chamar o Golfo do México de Golfo da América para atender a uma ordem executiva do presidente Donald Trump. Não adianta meio mundo achar a troca uma brincadeira e a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, ter rebatido que os Estados Unidos deveriam então se chamar América Mexicana para seguir um mapa-múndi de 1607. O mesmo mapa também já falava em Golfo do México 169 anos antes da fundação dos Estados Unidos. Mas, como o México não tem Google nem outra plataforma com mais de um bilhão de usuários, para boa parte das pessoas logo logo será mesmo Golfo da América.
Esta semana o DeepSeek chacoalhou o mundo da tecnologia ao se tornar o aplicativo gratuito mais baixado na loja da Apple. De desenvolvimento mais barato que o dos concorrentes americanos, o “ChatGPT chinês” também derrubou ações das big techs em Wall Street. Mas logo usuários começaram a notar que algumas de suas respostas são diferentes das do ChatGPT. Reportagem da Associated Press publicada pelo Estadão listou algumas.
Lembra por exemplo do massacre da Praça Tiananmen? Em 1989, tropas do governo chinês abriram fogo contra manifestantes pró-democracia liderados por estudantes. Não há um número oficial de mortos, mas se estima que tenham sido centenas - ou até milhares. O tema é tabu na China e a resposta do Deep Seek à pergunta do que aconteceu ali foi: “Desculpe, isso está além do meu escopo atual. Vamos falar sobre outra coisa”.
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ChatGPT, DeepSeek e similares pertencem à classe de LLMs, avançados modelos de linguagem treinados a partir de grandes bancos de dados - majoritariamente em inglês. Os mais populares pertencem a empresas norte-americanas. E, assim como os algoritmos de pesquisa e redes sociais, não são neutros. Ou seja, podem reproduzir vieses, preconceitos e estereótipos de seus programadores, que por sua vez podem receber ordens dos donos das empresas e de outros atores - na China, por exemplo, empresas devem passar por análise de segurança e obter aprovações do governo antes de lançar produtos. Dependendo das opiniões e suposições dos desenvolvedores, certos resultados podem ser favorecidos nas respostas. Soma-se a isso a intensa opacidade associada às empresas de IA. Pesquisas mostram que muitas não são transparentes sobre informações básicas, como onde fica sua sede, quem são seus responsáveis e investidores, quanto receberam de financiamento.
Nesse cenário, como ficam países que não têm plataformas nacionais de alcance global, como é o caso do Brasil? E mais: o que acontecerá com a História e a memória desses países diante de uma população cada vez mais conectada a LLMs estrangeiras globais que acredita mais no que encontra nos apps e sites de busca do que nos livros de História?
Em julho de 2023, publiquei uma coluna sobre o apagamento de Alberto Santos-Dumont, o inventor brasileiro conhecido nacionalmente como pai da aviação. Embora tenha feito em 1906 na França o primeiro voo com um veículo mais pesado que o ar homologado por autoridades - e amplamente registrado pela imprensa internacional - , ele nem sequer é citado pelo ChatGPT quando se pergunta quem inventou o avião. Em seu lugar, aparecem os irmãos americanos Orville e Wilbur Wright, cujos primeiros voos foram feitos com catapulta, longe de testemunha credenciada e só apareceram para o mundo depois de Santos-Dumont dizendo que tinham voado três anos antes sem qualquer registro oficial.
Hoje refiz a mesma pesquisa para a IA da Meta e o resultado foi parecido. Diz que o crédito pela invenção do avião é frequentemente atribuído aos irmãos Wright, mas “é importante notar que outros inventores e pesquisadores também trabalharam no desenvolvimento de aeronaves” antes deles. E cita três exemplos: Clément Ader (francês), Otto Lilienthal (alemão) e Octave Chanute (franco-americano). E nada de Santos-Dumont.
Como lembrou na mesma coluna o editor do Link, Bruno Romani, “a longo prazo, o conhecimento difundido por essas ferramentas de IA vai entregar uma versão da História que ignora outras culturas e outros contextos”. Ao reproduzirem o que mais aprenderam, e não necessariamente a verdade documentada, as IAs abrem margem para ampliar ainda mais a dominação cultural praticada há séculos por países que compõem o que os acadêmicos chamam de Norte Global.
Restam então algumas questões. A primeira é: quantos outros personagens da História brasileira - e de outros países sem LLM própria - já não terão sido apagados ou tido sua importância diminuída nas plataformas movidas a algoritmos estrangeiros? E a segunda: o que fazer diante desse desafio?
Romani destaca que esta semana surgiu uma novidade quando o DeepSeek abriu seu código e, em tese, facilitou e barateou o caminho para que outras desenvolvedores - e países - também criem a própria LLM. Ele lembra que no Brasil a empresa Maritaca AI também vem se destacando com seus modelos Sabiá de inteligência artificial em português. O desafio, no entanto, é ter LLMs locais que consigam atrair milhões de pessoas e realmente façam frente aos poderosos concorrentes estrangeiros.
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No livro A Era da IA e Nosso Futuro Como Humanos (Editora Alta Cult), Eric Schmidt (ex-CEO do Google), Daniel Huttenlocher (diretor do MIT Schwarzman College do Computing) e Henry Kissinger (ex-secretário de Estado americano e Prêmio Nobel da Paz em 1973) mostram como as plataformas digitais podem dar ao país de origem vantagem sobre qualquer país que dependa delas - não por acaso vimos na posse de Trump a imagem emblemática de todos os chefões das big techs perfilados.
Até as plataformas digitais, as fontes de informação e comunicação eram tipicamente locais e nacionais - e não tinham capacidade independente de aprender. “À medida que a IA aprende e se adapta a bases de usuários geográfica ou nacionalmente distintas, ela consegue influenciar o comportamento humano em regiões diversas e de maneira diferentes. Dessa forma, uma indústria fundada na premissa de comunidade e comunicação global pode, ao longo do tempo, facilitar um processo de regionalização - unindo blocos de usuários em realidades distintas, influenciadas por IAs distintas que evoluíram em direções diferentes.”
O real alcance das consequências geopolíticas, culturais e de mudança de percepção de realidade disso ninguém ainda sabe, mas seria bom a sociedade e as autoridades brasileiras ficarem de olho nos riscos desse mundo e tomarem providências urgentes para defender a memória e a cultura nacionais.