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A jornalista Luciana Garbin traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|O que aprendi sobre estresse num café com uma monja budista

Desligar o piloto automático, focar no presente e escapar da armadilha da rotina multitarefas podem ser ferramentas pra lá de úteis, segundo a professora e influenciadora Zentchu Sensei

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Foto do author Luciana Garbin
Atualização:

Claustrofóbica dentro de uma máquina de ressonância magnética, eu me pus a pensar no quanto anos acumulados de estresse haviam me ajudado a chegar ali. Nas duas horas de bombardeio de ruídos de todo tipo, fui relembrando das vezes em que me irritei por coisas que não mereciam assim tanta atenção, das noites interrompidas por preocupações, dos momentos em que acelerei quando na verdade deveria mesmo é ter parado. Quantas e quantas vezes as descargas de cortisol não deram as cartas na minha rotina multitarefas?

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Pensava sobre isso no caminho até o café onde tinha marcado encontrar a monja zen-budista Zentchu Sensei, uma simpática venezuelana que juntou nos últimos anos a seu currículo de professora, escritora e palestrante a ocupação de influenciadora digital e consultora. Apresentadora da live Petisco Zen e do programa Zazen para Acordar no Instagram e no YouTube, ela descobriu as redes sociais durante a quarentena da pandemia de covid-19 e não parou mais. Além de conquistar milhares de seguidores, passou a usar os preceitos do Budismo para orientar pessoas de diferentes origens, idades e profissões. Sempre com exemplos reais e, vira e mexe, tiradas do tipo: “Buda me livre!”.

No mesmo dia do café com Zentchu, eu havia recebido uma recomendação médica de evitar estresse. Quer coisa mais desafiadora que essa? E comecei por aí nossa conversa.

Não poderia ter encontrado interlocutora melhor.

Em pouco mais de uma hora, a monja que deixou a Venezuela em 1998, meses antes da eleição de Hugo Chávez, estudou anos de piano na Polônia, descobriu o Budismo no Brasil em 2003 e morou de 2010 a 2014 num mosteiro no Japão não só falou dos preceitos e lições budistas como contou que - pasmem! - a vida de monge também pode ser pra lá de estressante.

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“Você não imagina o quanto de estresse há num mosteiro. Tem cobrança, pressão e trabalho das 15 para as 7 da manhã às 15 para as 8 da noite. Eu que me achava rápida no Brasil no mosteiro em Nagoya me sentia no começo como uma tartaruga com reumatismo. Até que descobri que não adianta correr de lá pra cá. O que precisa é treinar o pensamento correto: processar rápido a informação e ter uma resposta apropriada. Isso vale para a vida também.”

A monja zenbudista Zentchu Sensei Foto: Werther Santana/Estadão

Zentchu conta que chegou a comandar por alguns meses toda a cozinha do mosteiro japonês e um dia cortava cebola e pensava nas suas conquistas quando a faca afiada escapou e quase cortou seu dedo fora. O fato reforçou um ensinamento valioso: a importância de permanecer totalmente no presente.

“Naquele momento deveria ser só a faca, o dedo e a cebola, nada mais”, resume. “Não poderia existir outro pensamento. Eu estava com a mente dividida, saí do presente e quase perdi o dedo.”

Para ela, tanto viver no passado quanto estar com os olhos no futuro geram estresse. “Somos humanos e podemos errar, mas carregar erros passados e projetar coisas que ainda não aconteceram geram um estresse terrível. Fique no presente: o que eu posso fazer hoje? Onde está a minha vida neste instante?”

Pergunto à monja o que nos faz voltar ao presente. “Respirar conscientemente, não negar a realidade, não ser quem você não é nem se colocar num lugar onde você não está”, responde ela. “A meditação ajuda muito, assim como perceber o corpo. E não negar os sentimentos. Se estou com raiva, eu percebo minha raiva, não nego. Digo: ‘Olha, isso me afetou, foi difícil, não gostei’. Negação é um prato feito para a ansiedade. O Budismo não fala em combater o estresse, mas em percebê-lo e a partir daí agir. Veja bem: agir, não reagir.”

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Essa ação passa por desativar o piloto automático, que nos carrega a todos em diferentes medidas.

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“O piloto automático é uma das grandes tragédias dessa vida, mata mais que câncer, mais que infarto, mais que tudo isso”, acredita Zentchu. “Pelo piloto automático você se alimenta mal 40 anos da sua vida e aí tem um monte de doenças. É preciso assumir as suas responsabilidades e fazer o que é possível da melhor forma.”

Não adianta nem culpar o carma. “Carma não é maldição como dizem por aí. É uma ação que gerou uma consequência. Se você é responsável, pode assumir com sabedoria e aprender. E não adianta cobrar de quem você era havia seis meses. Bater na pessoa que nos trouxe até aqui é covardia. Eu agradeço a todas as Zentchus do passado porque me fizeram a pessoa que sou hoje.”

Nesse processo de autoconhecimento e plena presença, é preciso também prestar atenção às armadilhas do ego. Sabe aqueles clássicos olha o que eu tenho, olha o que eu faço, olha o que eu sei? “Um mosteiro é uma grande máquina moedora de egos, porque se você se destaca ali significa que tem alguma coisa errada”, conta a monja. “Quanto mais insegura é uma pessoa, mais ela precisará de etiquetas para se proteger.”

Segundo ela, algumas pessoas vivem como que imobilizadas por armaduras de tantas etiquetas recebidas - da família, do namorado, de amigos... “Ah, eu sempre falei isso, sempre pensei isso, sempre comi isso. Nosso trabalho tem de ser para retirar essas etiquetas. Às vezes você já não precisa comer isso, sua fala mudou, esse pensamento não faz mais sentido. Então onde estão essas etiquetas? Só na sua mente. É preciso tirar o que impede esse processo de transformação constante. E isso dá uma baita liberdade porque o apego só traz sofrimento. Diga: ‘Olha, a situação mudou, o momento é outro, hoje sou outra pessoa’.”

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Ao lidar com gente de diferentes perfis nos últimos anos, a monja diz ter se surpreendido com a falta de compaixão que muitas pessoas têm não só pelos outros como por si próprias. “Sou assim, sou assado, sou uma porcaria. Muitas pessoas não se conhecem e é mais fácil voltar aos clichês. Mas somos o que escolhemos ser, não são os outros que nos fazem. Eu sou feita das minhas opções. O que me surpreende todos os dias é como as pessoas dizem que querem ser feliz, mas não trabalham para isso. Tudo nessa vida é treino e investimento. Tempo, dinheiro, esforço, você tem que investir. Sem persistência não dá.”

Cada um desses pontos mereceria mais uma hora de café, mas com o tempo acabando pergunto a Zentchu se ela concorda com quem acha que o mundo de hoje, com seu bombardeio digital, violência e pressão de redes sociais, está mais estressante. E ela nega categoricamente: “Achamos que esse mundo é o pior, mas é o único que temos. Quando dizem: ‘Ah, esse mundo está tão duro’, eu pergunto: Você já imaginou um pai de família romano em sua casa diante da chegada dos bárbaros? Ou alguém séculos atrás vendo os hunos se aproximando?”

PS: Ao longo da conversa, Zentchu também foi citando várias histórias e ensinamentos de Shakyamuni Buda. Embora os budistas acreditem na existência de vários Budas, costumam se referir ao príncipe indiano Sidarta Gautama como Buda histórico. Nascido há cerca de 2,6 mil anos num território hoje pertencente ao Nepal, ele foi criado cercado de cuidados e só descobriu que as pessoas podiam adoecer, envelhecer e morrer ao sair do palácio para buscar a verdade. Após renunciar aos prazeres e privilégios de sua casta, enfrentou as tentações da dualidade (diabo), mas permaneceu em meditação em busca de respostas até o atingir o nirvana - estado onde nada falta ou excede, onde há paz e tranquilidade vindas da sabedoria. Seu rico pacote de ensinamentos orais é até hoje seguido mundo afora por milhões de budistas.

“O Budismo não prega ‘Vem, filha, que vou te salvar’. Dizemos: essas são as ferramentas, são os preceitos. Shakyamuni Buda falava em três venenos da mente: raiva, ganância e ignorância. Também dizia que uma mente não treinada é mais perigosa que uma cobra venenosa num quarto escuro.”

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Para o Budismo, nada é fixo nem permanente. E, já que tudo é transitório e somos vida em transformação, por que se agarrar à dor e ao sofrimento? Suas “quatro nobres verdades” são: a insatisfação existe, há causas para essa insatisfação, a insatisfação pode ser eliminada quando compreendemos suas causas e condições, um caminho de prática leva à libertação desse sofrimento. Há também preceitos comuns a todas as tradições budistas. Não matar, não roubar, não abusar da sexualidade, não negociar intoxicantes (do corpo e da mente - sabe aqueles pensamentos tóxicos?) e não mentir estão entre os principais. Outros importantes são: não falar dos erros e faltas alheios, não se elevar e rebaixar os outros, não se rebaixar e elevar os outros, não dizer que é igual aos outros porque cada um é cada um, não ser movido pela ganância, não ser controlado pela raiva. Shakyamuni Buda pregava também que o caminho deve ser sempre o do meio - nem o do excesso nem o da falta - e não dá pra ser completamente feliz sem olhar para o coletivo - “Não vivemos sozinhos, precisamos estar atento ao mundo ao redor. Quem desperta tem o dever de ajudar os outros”.

E a espiritualidade no meio de tudo isso? Para a monja, é plenamente possível sentir prazer e alegria na existência, mas para isso, além de muitas vezes se desvencilhar de ideias e conceitos sobre si mesmo e o mundo, é preciso aprender a enxergar o sagrado na vida cotidiana. “O ensinamento do Budismo é que tudo o que eu fizer ou pensar é sagrado. Absolutamente tudo. Fazer as coisas conscientemente, dando o nosso melhor e conhecendo nossas possibilidades e limitações é um jeito de nos conectar conosco e com tudo o que nos rodeia. Presente na realidade, você pode fazer escolhas corretas e ser feliz. Não entendo espiritualidade afastada da vida.”

Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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