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Coluna quinzenal da jornalista Luciana Garbin que traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|Santos-Dumont foi muito mais do que o ‘pai da aviação’: novas gerações precisam saber disso

Aviador cujo nascimento faz 150 anos em julho foi cientista, designer e atuava de maneira parecida à das startups de hoje

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Foto do author Luciana Garbin
Atualização:

Alberto Santos-Dumont (1873-1932) foi o brasileiro de maior prestígio internacional de sua época. Quando o País vivia apenas de agricultura, ele foi para Paris, a capital cultural da Belle Époque, e se destacou pela ciência. Hoje, num mundo cada vez mais tecnológico, poderia servir como uma inspiração valiosíssima para as novas gerações. Mas, em vez disso, vem sendo a cada dia mais esquecido.

Santos-Dumont durante testes com o 14-Bis Foto: Itaú Cultural

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Boa parte dos brasileiros o conhece como “o pai da aviação”, termo cunhado no Estado Novo que o tornou um herói distante e empoeirado. Mas ele foi muito mais do que isso. Cientista autodidata, Santos-Dumont não só provou que era possível decolar com o 14-Bis, um aparelho mais pesado que o ar - sem auxílio de catapulta ou trilho, como fizeram os irmãos Wright - como criou outros 20 projetos, incluindo balões, dirigíveis, helicóptero e a Demoiselle, sua obra-prima. Pioneiro do design, ditou moda com seus colarinhos altos, cabelo dividido ao meio, chapéu panamá amassado e o relógio de pulso encomendado ao amigo Louis Cartier.

Santos-Dumont ganhou prêmios importantes com seu trabalho, foi tema de milhares de reportagens, em jornais e revistas do mundo inteiro, conviveu com nobres, artistas e grandes inventores. Criador da lâmpada, Thomas Edison lhe deu uma foto com a dedicatória: “To Santos-Dumont, Pioneer of Aerial Navigation (Para Santos-Dumont, pioneiro da aeronavegação)”. Com Graham Bell, o inventor do telefone, jantou em 10 de janeiro de 1902. Um ano depois, o escultor francês Auguste Rodin lhe dedicou um busto de gesso com o molde original da cabeça de Victor Hugo. O prestígio do aviador era tão grande que, em viagem aos Estados Unidos, foi recebido por ninguém menos que o presidente Theodore Roosevelt na Casa Branca. E chegou a prometer uma viagem em seu novo dirigível à filha dele, Alice.

Santos-Dumont se encontrou com o inventor do telefone, Graham Bell, em viagem aos Estados Unidos. Agenda com registro do jantar está sob guarda do Museu Paulista, em São Paulo Foto: Gabriel Biló/Estadão

O hangar de Santos-Dumont em Paris era ponto de encontro de amigos, curiosos e personalidades. Biógrafos listam entre as visitas as do rei da Bélgica Leopoldo II e do príncipe Alberto I, de Mônaco. Mas a considerada de maior importância para a França foi a da imperatriz Eugênia, viúva de Napoleão III. Em 11 de fevereiro de 1902, o New York Journal publicou uma foto do encontro e disse que era a primeira vez em 30 anos que Sua Majestade era fotografada num evento. “Lembro-me do rei da Espanha atravessar a rua para vir cumprimentá-lo e, assim, todas as personalidades de Paris”, escreveu Yolanda Penteado, amiga do inventor.

No auge da carreira, tudo o que “petit Santôs” fazia ou dizia tinha destaque. A ponto de as padarias parisienses batizarem com esse nome um biscoito de gengibre com seu perfil que se tornou disputadíssimo. Caixas de chocolate da época traziam miniaturas de seus dirigíveis, peças de teatro falavam dele e até concursos de brinquedos tinham categoria relacionada a Santos-Dumont. O jornal americano New York Herald publicou em 2 de março de 1902 que a miniatura do dirigível número 6, com o qual o aviador contornou a Torre Eiffel, havia se tornado o brinquedo favorito de crianças francesas.

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Em vida, o inventor batizou avenidas e praças. Após sua morte, virou nome de aeroporto, escolas e até cratera na Lua. O “presente” nos Montes Apeninos lunares foi sugerido pelo Museu do Ar e do Espaço da Smithsonian Institution, dos Estados Unidos, e concedido em 1973 pela União Astronômica Internacional. Coube ao astronauta Michael Collins, tripulante da nave Apollo 11, que viajou à Lua em 1969, dizer que se tratava do “reconhecimento do mundo à contribuição do gênio inventivo de Santos-Dumont ao desenvolvimento e progresso aeroespacial contemporâneo”.

Em terras brasileiras, deve-se a Santos-Dumont um outro feito ainda hoje desconhecido de boa parte da população. Em 1916, o inventor “descobriu” as Cataratas do Iguaçu. Ao cruzar do lado argentino para o brasileiro e ser informado de que as cataratas eram propriedade particular de um uruguaio, resolveu ir a Curitiba propor a desapropriação da área para criação de um parque. Como não havia estrada em mais da metade do caminho, foi a cavalo até Guarapuava. Saiu de Foz do Iguaçu e enfrentou mais de 300 quilômetros de mata virgem. A chamada Cavalgada Patriótica durou seis dias e continuou de carro e trem até Curitiba, onde em 8 de maio foi recebido pelo então presidente do Estado, Affonso Alves de Camargo, e o convenceu a desapropriar as terras. O Parque Nacional do Iguaçu só seria criado em 19 de janeiro de 1939, por decreto do então presidente da República Getúlio Vargas. Em 17 de novembro de 1986, as Cataratas do Iguaçu receberam da Unesco o título de Patrimônio Natural da Humanidade e até hoje são um dos locais mais visitados do País.

Cataratas do Iguaçu, em foto de 12 de maio de 1959 Foto: Arquivo/Estadão

Apesar da riqueza de sua história, Santos-Dumont tem sofrido com a mesma sina de outros brasileiros importantes num País que pouco cuida de sua memória: o desconhecimento. Boa parte de seu acervo está encaixotada, longe das vistas do público, e não há nenhuma orientação oficial sobre como falar de Santos-Dumont nas salas de aula. Pouco também tem se falado sobre os 150 anos de seu nascimento, que serão comemorados daqui a poucos dias, em 20 de julho. Na Encantada, casa que o inventor construiu em Petrópolis e hoje funciona como museu, as perguntas que as monitoras mais costumam ouvir são se Santos-Dumont se matou mesmo, se era gay e se voou depois dos irmãos Wright. Questionamentos até legítimos, mas muito limitados diante da grandeza de um homem que há mais de um século pôs em prática nos céus de Paris o que hoje as startups fazem num mundo cada vez mais digital: desenvolver uma ideia inovadora que provoque impacto na sociedade e possa ser escalável e repetível. Santos-Dumont fez isso com a aeronavegação e depois com a aviação, sempre se autofinanciando e testando os próprios experimentos, que ajudaram a mudar o mundo. De quebra, também criou coisas que ainda hoje existem - como o check list e o hangar. Mas quase ninguém sabe disso. É preciso compartilhar sua história. As novas gerações precisam conhecê-la!

A questão da assinatura foi um tema importante para Santos-Dumont. Ele alcançou a fama em Paris, mas sempre fez questão de ressaltar sua origem brasileira. Para tanto, primeiro adotou o hífen para unir o Santos ao Dumont e, anos mais tarde, o substituiu por um sinal de igual. Passou a ser então Santos=Dumont, numa representação do Brasil igual à França Foto: Wilton Junior/Estadão

PS: Ah, e para quem ficou curioso sobre as respostas aos questionamentos mais feitos na Encantada:

Sim, Santos-Dumont se matou em 1932, a exemplo do que sua mãe havia feito 30 anos antes. Ele já havia tentado o suicídio outras duas vezes, passado temporadas em clínicas europeias e buscado ajuda de psiquiatras no Brasil e fora. Como a Psiquiatria ainda engatinhava na época, era tratado geralmente apenas com calmantes. Especialistas não arriscam um diagnóstico definitivo, mas concordam que ele padecia de um transtorno mental.

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Sobre sua sexualidade, jornais da época lhe atribuíam muitos affairs, sempre com mulheres. Fotos e cartas de seu acervo pessoal indicam o interesse por moças jovens, em relacionamentos geralmente platônicos. Como na época ter família grande era norma, sua escolha por ficar solteiro e não ter filhos deu margem a um patrulhamento social que chegou a incomodá-lo. Em desenho feito em 8 de janeiro de 1929, três anos antes de sua morte, Santos-Dumont escreveu que sua família eram o dirigível, o biplano e o monoplano.

Hangar de Santos-Dumont era ponto de visitação em Paris Foto: Wikimedia Commons

Em relação à polêmica se voou antes ou depois dos irmãos Wright, a história mostra que, enquanto o brasileiro decolou sem auxílio externo em 1906 diante de centenas de pessoas e de uma comissão do Aeroclube da França previamente convocada para atestar a legitimidade do voo, os americanos dizem ter voado em 1903, mas sem testemunhas credenciadas e com auxílio de trilhos, ventos e catapulta. Preocupados em serem copiados antes de ganharem dinheiro com sua máquina, eles se recusavam a mostrá-la à imprensa, ao contrário de Santos-Dumont, que sempre teve seus inventos divulgados. Portanto, dentro dos critérios da época (decolar por meios próprios, sem ajuda externa, em voo agendado com antecedência, diante de comissão idônea), o inventor brasileiro voou primeiro. Foi em 23 de outubro de 1906, com o 14-Bis. Percorreu 60 metros. Em 12 de novembro do mesmo ano, voou outros 220 metros. O primeiro recorde de aviação foi reconhecido pela Federação Aeronáutica Internacional, entidade com representantes de vários países, incluindo os Estados Unidos. Especialistas dizem que até o fim da 2.ª Guerra Mundial as literaturas francesa, inglesa e americana falavam de um jeito de Santos-Dumont. Depois, a conversa mudou: americanos passaram a dizer que ele foi o primeiro a voar na Europa, “com uma máquina feia e estranha”. Aí se começou a mudar a história e os brasileiros pouco - ou nada - fizeram diante do mundo para resgatá-la.

Desenho em que Santos-Dumont disse que dirigível, biplano e monoplano eram sua família Foto: Imagem da coleção Pedro Corrêa do Lago

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*Autora do livro infantil ‘Albertinho e suas incríveis máquinas voadoras’ (Editora Letras do Brasil), Luciana Garbin foi curadora da exposição ‘Santos-Dumont na Coleção Brasiliana Itaú’

Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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