Luís Cardoso faz uma viagem ao Timor Leste em 'O Plantador de Abóboras'

Narrativa surgiu depois de uma viagem ao seu país de origem com o escritor José Saramago

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Por Giovana Proença
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No Timor-Leste, um dos mais jovens países do mundo, a paz é sempre efêmera. Essa premissa conduz a narrativa de O Plantador de Abóboras, de Luís Cardoso. Com o romance, que chega ao Brasil pela Todavia, o escritor torna-se o primeiro timorense laureado com o Prêmio Oceanos.  Em um só fôlego, a narradora feminina – referida no livro como a mítica noiva de Manu-Mutin – mistura suas reminiscências e os sucessivos conflitos no país. “Numa guerra ninguém faz considerações morais: ou se mata ou se morre”, dita o tom do romance.  Cardoso extraiu o modelo para a singular narradora de O Plantador de Abóboras de uma viagem ao Timor-Leste, seu país de origem, na companhia de José Saramago. A partir do encontro com uma mulher anônima, capaz de relembrar a tempestuosa história da nação asiática, Cardoso transfigura os fatos históricos em ficção. Na narrativa, após o abandono, a personagem espera há décadas o regresso do noivo. 

O escritor Luis Cardoso, do Timor Leste, vence o Prêmio Oceanos com o romance'O Plantador de Abóboras' Foto: Daniel Rocha

Após a independência do domínio colonialista português, em 1975, o Timor-Leste seria ainda invadido pela Indonésia, ocupação que se arrastaria até 2002. O turbulento histórico político da nação orienta o inventário de personagens de Cardoso: o avô que veio de Moçambique lutar em terra timorense, a avó obrigada a carregar o fardo de seus antepassados, o pai que visa enriquecer com o café, o excêntrico feitor e o noivo aficionado por Dom Quixote. A semeadura das abóboras funciona como o leitmotif que costura a trama. Ainda que não tenham o mesmo valor do café, são as plantações de abóboras que exercem fascínio dentro do romance. É a pronúncia do fruto em latim que une a narradora ao noivo, por quem ela espera no vestido branco, manchado pelo sangue do pai, até depois de ser violada por aqueles que acreditam que serão absolvidos pela pátria. Cardoso se apropria de um conhecido lugar dentro da literatura: o delírio feminino diante do abandono. Desde a Antiguidade, com figuras como Ariadne, Dido e Medeia, o sofrimento da mulher é um grande mote nas letras. Entretanto, poucas Penélopes tem de volta o seu Odisseu. A dor pela traição política une-se ainda à espera da noiva de Manu-Mutin. Mas, ela resiste. 

Vendedor ambulante passa por um mural, em Dili, no Timor Leste. Foto: Antonio Dasiparu/EFE

O romance evidencia a dura condição feminina em meio ao cenário de guerra. A narradora de O Plantador de Abóboras é, apesar disso, a última sobrevivente a permanecer naquelas terras. Se o seu relato pode ser considerado desconexo e fragmentário, também é verdade que por meio dele são revelados os pontos ocultos de sua trajetória pessoal e da história do Timor-Leste. O Plantador de Abóboras perscruta os brutais rastros do colonialismo e das disputas de poder nas nações de independência tardia. O romance reflete ainda sobre os crimes cometidos em nome da pátria e o exercício da violência.  A noiva de Manu-Mutin, em seu vestido branco tingido de sangue, parece uma personagem saída das fantasias de escritores como o gótico americano William Faulkner e Charles Dickens, com sua abandonada Srta. Havisham, de Grandes Esperanças. O cenário pós-colonial colabora ainda com o tom fantasmagórico, de modo que a imagem da noiva ensanguentada espelha as cicatrizes do país e as marcas da guerra. 

O escritor norte-americno William Faulkner, vencedor do Nobel de Literatura Foto: New Films International/Companhia das Letras

O romance é marcado pela narrativa memorialista, transitando entre o poético, o mágico e o realismo cru. O intimismo do relato também permite as digressões e o caráter fragmentário das reminiscências, que assumem tom trágico conforme o desfecho se aproxima. O português da prosa de Cardoso é inundado por expressões do Timor-Leste, a terra que luta para se constituir como nação. No jogo de fusões que compõem o romance, o realismo suscitado por uma história repleta de violência mescla-se ao misticismo inerente à trama. O Plantador de Abóboras pode ser lido como uma reflexão sobre os limites entre a memória individual e a memória coletiva. A resistência, mote central do livro, está na mulher que permanece sozinha à espera de um regresso, cercada por uma espiral de repetições. Incapaz de abandonar as lembranças, ela as relata. O romance de Cardoso é uma peça sobre as reminiscências que perduram, apesar do decorrer do tempo, e a força do que se conserva. Ao final, são as abóboras - e não o valoroso café - que norteiam o romance. “Havemos de merecer este país de acordo com o que sonharam e fizeram os homens que por ele deram as suas vidas sem esperar recompensa”, reflete a narradora. Em O Plantador de Abóboras, Luís Cardoso labuta a semeadura da memória.

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