Assisti a Clube das Mulheres de Negócios no Festival de Cinema de Gramado. Registrei que lá, na serra gaúcha, a recepção foi morna, com a ressalva de que o público é muito parcimonioso. Raramente consagra. Em todo caso, esse novo trabalho de Anna Muylaert não é mesmo um filme fácil, como a própria diretora reconhece. Ela o compara com seu primeiro longa, Durval Discos, dizendo que este é um "filme de amor", enquanto Mulheres é um "filme de raiva". Essa modulação de sentimentos se expressa na própria linguagem da obra. Mais tensa, agressiva, sarcástica quando entra no registro do humor.
Clube das Mulheres expressa um momento em que a sociedade se move, e talvez para um futuro mais civilizado e equânime, mas com os ânimos exasperados, de punhos cerrados, como costuma acontecer nas disputas por espaço. É um momento bélico, de ajuste de contas e as reconciliações, caso aconteçam, ficam para depois.
Apenas para contextualizar o sentimento dominante: há pouco, na Mostra de Gostoso, uma participante do festival, citando uma autora norte-americana, disse que talvez hoje a tarefa mais urgente fosse democratizar o mal-estar. Isso porque, de acordo com ela, o bem-estar é limitado a uma privilegiada parcela da população - a dos homens brancos cisgênero. Esse tipo de comentário é importante para entender o ambiente em que vivemos e notar que a agressividade não é apenas um destempero de momento, mas uma estratégia de jogo. Fecha o parêntese.
O Clube das Mulheres de Negócios funciona à base de uma inversão dos clichês de gêneros. As mulheres que se reúnem no tal clube são poderosas, abusivas, autoritárias, algumas com problemas com a justiça, adoram armas de fogo, etc. Os homens ocupam posição subalterna, passiva, dócil, subalterna. São maridos fracos, colocados à parte, enquanto as mulheres debatem negócios - e negociatas. Num clube de luxo, elas são servidas por rapazes bonitos, de shortinho, troféus sexuais. E assim por diante.
A ideia, pelo menos, nessa fase inicial da obra, é colocar um espelho no qual os homens se vejam refletidos em todo o autoritarismo, desmandos e o ridículo típicos da sociedade machista. Sente-se o grito de revolta por trás das imagens em aparência cômicas.
Seria um filme óbvio, caso ficasse apenas nisso. Por sorte, Anna Muylaert é uma cineasta de recursos, que não se contenta com pouco e não se limitaria a propor um retrato caricato de uma sociedade injusta pela via da inversão. Seria muito pouco. Vai além do ponto de partida e evolui para uma obra que se desenvolve em outras direções e atalhos imprevisíveis. Melhora demais do meio para o fim, quando as próprias contradições das "empoderadas" começam a colocá-las em xeque.
Sem dar spoiler, pode-se dizer que a dimensão da obra se amplia para uma crítica geral do poder e de como a soberba no domínio sobre os outros e sobre a própria natureza pode levar todos (e todas) ao caos.
Também é uma obra de muitas camadas no sentido literal do termo. Há o luxo do clube na superfície, mas também existem os porões, os baixios nos quais acontecem coisas inimagináveis na parte de cima. Essa disparidade entre estratos da narrativa funciona em regime de metáfora da própria sociedade brasileira, que, por tradição, se apresenta como cartão postal, escondendo uma realidade bem diferente da que opera no porão.
Esteticamente, Clube das Mulheres me pareceu uma obra muito sólida, com registro fotográfico preciso da craque Barbara Alvarez e trilha sonora de André Abujamra, que faz também um pequeno papel como um dos maridos dominados pelas poderosas.
Algumas cenas de impacto ficam na retina e na lembrança dos espectadores. Em especial uma, de assédio invertido, quando um jovem se vê acossado sexualmente por uma das madames, interpretada por Grace Gianoukas. "É para mostrar aos homens o que nós sentimos nesse tipo de situação", disse a atriz no debate em Gramado. Aliás, um formidável elenco feminino brilha no filme com, além de Grace, Cristina Pereira, Irene Ravache, Louise Cardoso, Katiuscia Canoro, Polly Marinho, Helena Albergaria, Shirley Cruz, Maria Bopp e Ítala Nandi.
Tudo funciona no sentido de contemplar as questões de gênero e identitárias como a grande pauta contemporânea, "que está mudando o tecido da sociedade", acredita a diretora. Por outro lado, ao propor uma crítica concreta do poder - seja masculino ou feminino - o filme evita recolher-se ao nicho específico do identitarismo puro e duro.
Avança, e esse avanço é sua maior virtude, mas, em todo caso, indica um deslocamento de preocupações da autora. Em Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert é mais política ao indicar os efeitos da mobilidade de classe sobre a estrutura dos privilegiados do país. No caso, a filha da empregada doméstica que "tira a vaga" na faculdade do filho da classe dominante.
Em O Clube das Mulheres de Negócios, a temática de classes é posta de lado em proveito das questões de gênero, mas, como já disse, com abertura para a discussão do poder, dos seus desvarios e suas ilusões, que podem nos conduzir à breca seja lá quem for que o exerça com irresponsabilidade.
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