
Ilha das Flores" é eleito o melhor curta-metragem brasileiro de todos os tempos
Votação foi promovida pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema e servirá de base para livro realizado em parceria com Canal Brasil e Editora Letramento
No ano em que comemora três décadas de seu lançamento, o filme "Ilha das Flores", de Jorge Furtado, é eleito o melhor curta-metragem brasileiro de todos os tempos, em levantamento realizado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e que servirá de base para o livro "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", produzido em parceria com Canal Brasil e editora Letramento.
A produção gaúcha - que está disponível no Canal Brasil Play -, vencedora do Urso de Prata do 40º Festival de Berlim, em 1990, é a primeira colocada de uma lista 100 títulos, que abrange desde obras feitas em 1913 ("Os Óculos do Vovô"), de Francisco Santos, o mais antigo filme brasileiro ficcional ainda preservado, até curtas recentes como as animações "Torre" (2017), de Nádia Mangolini, e "Guaxuma" (2018), de Nara Normande.
Em segundo lugar na votação promovida pela Abraccine com críticos, professores e pesquisadores de todo o país, aparece "Di" (1977), de Glauber Rocha, ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, seguido por "Blábláblá" (1968), de Andrea Tonacci, "A Velha a Fiar" (1964), de Humberto Mauro, e "Couro de Gato" (1962), de Joaquim Pedro de Andrade.
Joaquim Pedro tem quatro filmes selecionados entre os 25 primeiros colocados - além de "Couro de Gato", estão "Vereda Tropical" (15ª colocação), "O Poeta do Castelo" (21ª) e "Brasília, Contradições de uma Cidade Nova" (22ª). O cineasta com mais produções na lista, no entanto, é Aloysio Raulino, que, como diretor, construiu um corpo de obra muito mais prolífico e marcante no curta-metragem. Cinco de seus filmes foram destacados: "O Porto de Santos", "O Tigre e a Gazela", "Jardim Nova Bahia", "Lacrimosa", este codirigido com Luna Alkalay, e "Teremos Infância".
Também ganha destaque na votação a filmografia de Ivan Cardoso no formato, com quatro títulos: "À Meia-noite com Glauber", "Nosferato no Brasil", "HO" e "Moreira da Silva". Da produção mais recente, chamam a atenção Kleber Mendonça Filho ("Vinil Verde", "Recife Frio" e "Eletrodoméstica") e André Novais Oliveira ("Fantasmas", "Quintal" e "Pouco Mais de um Mês"), cada um com três filmes.
Além de "Os Óculos da Vovô", em 53º lugar, o primeiro cinema foi lembrado com "Rituais e Festas Bororo" (1917), do Major Thomaz Reis, em 80º, e "Exemplo Regenerador" (1919), de José Medina, em 99º. Pioneiro, Humberto Mauro está presente com três trabalhos: "A Velha a Fiar", quarta posição, "Carro de Bois" (1974), na 48ª, e "Cantos de Trabalho" (1955), na 67ª.
A votação também levou em consideração os médias-metragens com até 50 minutos, produção feita em menor quantidade no país e que teve grande representatividade na lista. Entre eles estão "SuperOutro" (1989), de Edgard Navarro, na sétima posição. "Viramundo" (1965), de Geraldo Sarno, na 12ª, "Horror Palace Hotel" (1978), de Jairo Ferreira, em 41ª, e "Integração Racial" (1964), de Paulo Cezar Saraceni, na 81ª.
Organizado por Gabriel Carneiro e Paulo Henrique Silva, a publicação "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais" será lançada no segundo semestre de 2019. Produzida em formato de livro de luxo, contará com ensaios dedicados a cada um dos 100 títulos, escritos por autores diferentes ligados à crítica e à pesquisa de cinema. Terá ainda 20 artigos sobre a história do curta-metragem no Brasil.
"Curta Brasileiro" encerra a coleção "100 Melhores Filmes", formada por "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais" (2017) e "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" (2018), produzidos em conjunto por Abraccine, Canal Brasil e Editora Letramento. O de animação ainda teve a parceria da Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA) e patrocínio da Secretaria do Audiovisual.
Abaixo, meu texto crítico sobre Ilha das Flores presente no livro Documentário: 100 filmes essenciais (org. Paulo Henrique Silva, editora Letramento/Canal Brasil)
Ilha das Flores
O mecanismo implacável do capitalismo visto pela trajetória de um simples tomate? É o que faz Ilha das Flores, aclamado curta-metragem de Jorge Furtado.
Chamá-lo de "aclamado", no caso, não é simples exercício retórico e , portanto, vazio. Quem esteve no Festival de Gramado de 1989 lembra-se até hoje do impacto produzido sobre o público. Nos anos seguintes, Furtado, junto com o seu pessoal da Casa de Cinema de Porto Alegre, tornou-se referência obrigatória do cinema e TV do país. A força daquele filme de pouco mais de 13 minutos de duração alimenta todo seu trabalho posterior.
De onde vem essa energia? É o que nos perguntamos a cada vez que o revemos. Há pouco tive a ideia de mostrá-lo a um grupo de jovens alunos de um curso de cinema e pude comprovar que o impacto de Ilha das Flores segue intacto. De onde provém e como se mantém ao longo do tempo, que devora tantas outras boas obras audiovisuais?
O explosivo curta-metragem nasce, no entanto, de um projeto modesto. Em seu livro Um Astronauta no Chipre (1), Jorge Furtado conta que o filme nasceu de um convite da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para fazer um vídeo sobre o tratamento do lixo.
Como não sabia nada do assunto, o cineasta foi pesquisar. Descobriu que um dos lixões de Porto Alegre ficava nessa localidade de nome bucólico. No local, surpreendeu-o a situação que o filme narra: "Uma fila de pessoas esperando que os porcos se alimentassem do lixo, para então terem sua vez" (Furtado, op. cit. p.63).
Com o choque, claro, o projeto se alterou. Diante de tamanho despautério social, como levar adiante um vídeo didático sobre o tratamento do lixo? No entanto, havia lá um filme a ser feito. Na verdade, um filme que exigia ser feito.
Pensando na situação daquelas pessoas, Furtado concluiu que aquela situação fazia parte da lógica de um sistema. Lógica perversa, mas lógica, ainda assim.
O tema nasce dessa constatação, desse espanto, talvez dessa consternação. A forma foi mais difícil para ser encontrada. O passo seguinte seria desconstruir essa lógica, ver como opera. Mas como? Pela denúncia pura e simples? Talvez, mas uma arma talvez mais eficaz e atraente fosse trabalhar com as artes da ironia e da paródia. Fazer algo como o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que dizia escrever "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia".
Desse modo, a estrutura heteróclita, que se serve de filmagens diretas, material de arquivo, colagens, animações e desenhos, além de uma longa narrativa off, parodia os documentários didáticos, e o faz com raro senso irônico. Modula-se através de um processo associativo, que, por metonímia, associa elementos contíguos e constrói relações inesperadas. O tomate, plantado por um agricultor japonês, chega ao mercado onde é comprado por uma dona de casa, que ganha dinheiro vendendo perfumes, por sua vez fabricados a partir de flores. Ao examinar em casa esse tomate, a compradora acha que este não presta para fazer o molho do lombo de porco que cozinha e o atira no lixo. Do lixo coletado, o tomate chega à Ilha das Flores, onde o dono dos porcos também o recusa, e então ele se mostra propício ao consumo humano - no elo final da cadeia alimentar. Toda a trajetória é narrada pela voz off do ator Paulo José, que a mantém num registro de seriedade irônica.
O filme é quase todo feito de associações engraçadas por sua aparente arbitrariedade. Uma coisa leva a outra, do tomate ao dinheiro, invenção do homem, que só pode criar esse elemento simbólico de trocas por ter o telencéfalo altamente desenvolvido. Além do polegar opositor, que o torna apto a manipular, plantar e construir objetos, que podem ser vendidos e trocados. O senhor Suzuki, que cultiva o tomate, e a dona Anete, que o compra, são humanos. Dona Anete é católica, o que remete a Jesus. Jesus era judeu e o filme então mostra um grupo de judeus sendo levado a um campo de extermínio nazista. Todos são humanos - judeus e nazistas. O plantador de tomates, a dona de casa, o proprietário dos porcos.
Como humanos são aqueles que recolhem os restos dos porcos na Ilha das Flores. Por que isso acontece? Porque esses seres humanos em especial - os miseráveis - não têm dono, como os porcos, e nem dinheiro, como o dono dos porcos. Mas são livres, como lembra o pensamento liberal. E então o narrador recorre ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles: "Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda".
O resto é verdade.
A troca de tom do discurso - do irônico ao melancólico - acompanha a surpresa do espectador com o desfecho. Surpresa e epifania ao ver o mecanismo da injustiça social desmontado à sua frente, com tanta graça e rigor.
Notas:
- Furtado, Jorge. Um Astronauta no Chipre, Oficius, Porto Alegre, 1992.
Abaixo, a lista completa com os 100 melhores curtas-metragens eleitos pela Abraccine:
- Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado
- Di (1977), de Glauber Rocha
- Blábláblá (1968), de Andrea Tonacci
- A velha a fiar (1964), de Humberto Mauro
- Couro de gato (1962), de Joaquim Pedro de Andrade
- Aruanda (1960), de Linduarte Noronha
- SuperOutro (1989), de Edgard Navarro
- Maioria absoluta (1964), de Leon Hirszman
- A entrevista (1966), de Helena Solberg
- Arraial do Cabo (1959), de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro
- Alma no olho (1973), de Zózimo Bulbul
- Viramundo (1965), de Geraldo Sarno
- Vinil verde (2004), de Kleber Mendonça Filho
- Documentário (1966), de Rogério Sganzerla
- Vereda tropical (1977), de Joaquim Pedro de Andrade
- Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho
- Nelson Cavaquinho (1969), de Leon Hirszman
- Zezero (1974), de Ozualdo Candeias
- Sangue corsário (1980), de Carlos Reichenbach
- O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), de Jorge Furtado e José Pedro Goulart
- O poeta do castelo (1959), de Joaquim Pedro de Andrade
- Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), de Joaquim Pedro de Andrade
- Maranhão 66 (1966), de Glauber Rocha
- O som ou tratado de harmonia (1984), de Arthur Omar
- Subterrâneos do futebol (1965), de Maurice Capovilla
- Mato eles? (1983), de Sérgio Bianchi
- Guaxuma (2018), de Nara Normande
- Meow! (1981), de Marcos Magalhães
- Eletrodoméstica (2005), de Kleber Mendonça Filho
- O rei do cagaço (1977), de Edgard Navarro
- Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira
- Socorro Nobre (1995), de Walter Salles
- À meia noite com Glauber (1997), de Ivan Cardoso
- Dias de greve (2009), de Adirley Queirós
- A pedra da riqueza (1975), de Vladimir Carvalho
- Memória do cangaço (1965), de Paulo Gil Soares
- O duplo (2012), de Juliana Rojas
- Quintal (2015), de André Novais Oliveira
- Fala Brasília (1966), de Nelson Pereira dos Santos
- O porto de Santos (1978), de Aloysio Raulino
- Horror Palace Hotel (1978), de Jairo Ferreira
- Esta rua tão Augusta (1968), de Carlos Reichenbach
- Muro (2008), de Tião
- Manhã cinzenta (1969), de Olney São Paulo
- O tigre e a gazela (1977), de Aloysio Raulino
- Cinema inocente (1980), de Julio Bressane
- ...a rua chamada Triumpho 969/70 (1971), de Ozualdo Candeias
- Carro de bois (1974), de Humberto Mauro
- Olho por olho (1966), de Andrea Tonacci
- Praça Walt Disney (2011), de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira
- Chapeleiros (1983), de Adrian Cooper
- Juvenília (1994), de Paulo Sacramento
- Os óculos do vovô (1913), de Francisco Santos
- Dossiê Rê Bordosa (2008), de Cesar Cabral
- Lampião, o rei do cangaço (1937), de Benjamin Abrahão
- Animando (1983), de Marcos Magalhães
- Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino
- Partido alto (1982), de Leon Hirszman
- Torre (2017), de Nádia Mangolini
- Mauro, Humberto (1975), de David Neves
- Ver ouvir (1966), de Antônio Carlos Fontoura
- Congo (1972), de Arthur Omar
- Caramujo-flor (1988), de Joel Pizzini
- Lacrimosa (1970), de Aloysio Raulino e Luna Alkalay
- Palíndromo (2001), de Philippe Barcinski
- Um sol alaranjado (2002), de Eduardo Valente
- Cantos de trabalho (1955), de Humberto Mauro
- O guru e os guris (1973), de Jairo Ferreira
- Nosferato no Brasil (1970), de Ivan Cardoso
- Mulheres de cinema (1976), de Ana Maria Magalhães
- Kbela (2015), de Yasmin Thayná
- A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998), de Carlos Adriano
- Libertários (1976), de Lauro Escorel
- Meu compadre Zé Ketti (2001), de Nelson Pereira dos Santos
- Seams (1993), de Karim Aïnouz
- Céu sobre água (1978), de José Agrippino de Paula
- Dov'è Meneghetti? (1989), de Beto Brant
- Teremos infância (1974), de Aloysio Raulino
- Texas Hotel (1999), de Cláudio Assis
- Rituais e festas Bororo (1917), de Major Thomaz Reis
- Integração racial (1964), de Paulo Cezar Saraceni
- HO (1979), de Ivan Cardoso
- Kyrie ou o início do caos (1998), de Debora Waldman
- Pouco mais de um mês (2013), de André Novais Oliveira
- Cartão vermelho (1994), de Laís Bodanzky
- Um dia na rampa (1960), de Luiz Paulino dos Santos
- Moreira da Silva (1973), de Ivan Cardoso
- Nada (2017), de Gabriel Martins
- Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (1981), de Miguel Rio Branco
- O ataque das araras (1975), de Jairo Ferreira
- Enigma de um dia (1996), de Joel Pizzini
- Amor! (1994), de José Roberto Torero
- Menino da calça branca (1961), de Sérgio Ricardo
- Estado itinerante (2016), de Ana Carolina Soares
- Amor só de mãe (2002), de Dennison Ramalho
- Carolina (2003), de Jeferson De
- Contestação (1969), de João Silvério Trevisan
- Guida (2014), de Rosana Urbes
- Exemplo regenerador (1919), de José Medina
100. Frankstein punk (1986), de Cao Hamburger e Eliana Fonseca