Bob Marley - One Love, de Reinaldo Marcos Green, cobre um período pequeno da vida do personagem - de 1976 a 1978, quando ele vai para Londres gravar seu álbum Exodus. Parece uma boa opção. Ao invés de uma panorâmica "do berço à cova", escolhe um momento decisivo de uma vida muito intensa. Marley nasceu em 1945 e morreu em 1981, com 36 anos.
No entanto, mesmo ajustando a lente sobre período tão restrito, o filme parece meio superficial no trato do contexto - em particular a guerra civil que dividia a Jamaica e as tentativas de Marley, um pacifista, em servir como mediador entre as partes antagônicas. A intervenção política custa-lhe um atentado à bala.
Entre outras, há também uma questão de verossimilhança a ser discutida. O ator Kingsley Ben-Adir melhora muito a figura física de Marley. É mais alto, mais forte e pinta de galã. Não se parece nada, ou muito pouco, com o Marley da vida real que conhecemos por fotografias e algumas imagens em movimento. Mas essa é uma eterna discussão sobre a necessidade de semelhança física (natural ou a custa de maquiagem e efeitos especiais) entre personagens muito conhecidos e atores ou atrizes que os(as) interpretam.
O fato é que a presença de Kingsley empresta força ao mito Bob Marley, já existente durante a vida do artista, e que apenas se intensifica com sua morte prematura, vitimado por um câncer.
Há também o aspecto do registro fotográfico, em especial o de comunidades pobres. Um dos filhos de Bob, Ziggy Marley, produtor do filme, tem dito que a fotografia da obra se inspira na de Cidade de Deus, assinada por César Charlone para o filme de Fernando Meirelles. Pode ser, mesmo porque Cidade de Deus, que já tem mais de 20 anos de idade, se tornou a obra cinematográfica brasileira recente mais influente no cinema internacional. A foto de Charlone nada tem de apaziguante, ou digestiva, pelo contrário, é tensa e agressiva, mas chegou a ser qualificada por aqui de veículo para uma certa "cosmética da fome". Hoje, essa discussão parece datada como uma piada racista. O filme ficou.
Um crítico brasileiro tem outra ideia e classificou a fotografia de Bob Marley sob o rótulo de "efeito Netflix", que tornaria homogêneo o desenho visual de forma a contentar públicos de mais de uma centena de países e já viciados no picolé audiovisual proposto pela plataforma - ela e as outras. Em tempo, essa tentativa de pasteurização estética das plataformas de streaming foi devidamente gozada no recente filme de Nanni Moretti, O Melhor Está por Vir, ainda em cartaz nos cinemas.
Com tudo isso, essa cinebiografia do cantor e compositor jamaicano passa uma magia que vem da personalidade carismática de Marley e que surge na tela, apesar das concessões feitas pelo caminho. Mesmo porque essa figura vem embalada em muita música, e da melhor qualidade. Isso pode parecer uma obviedade, mas filmes sobre músicos devem ter música em abundância. E muitas vezes não têm. Por opção do diretor, ou, mais frequentemente, pelo preço exorbitante cobrado pelos direitos autorais, sobretudo por herdeiros do autor.
Como esta é uma obra oficial da família Marley, a questão não entrou em pauta. Filmes familiares apresentam outro tipo de problema. O principal, apresentar um perfil chapa branca dos seus entes queridos que, no entanto, como pessoas públicas, merecem ser vistas em suas várias e por vezes contraditórias facetas.
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