Diário crítico (3)
BRASÍLIA - Apesar de ser produção do Distrito Federal, O Pacto da Viola, segundo concorrente de longas-metragens nacionais, repõe em primeiro plano a referência mineira a Guimarães Rosa, já presente no longa anterior, Suçuarana. Impressionante como Rosa, felizmente, continua presente e a inseminar a cultura brasileira.
Como o título indica, o filme, dirigido por Guilherme Bacalhao, centra-se na questão do pacto com o demônio, algo, senão universal, pelo menos presente em diversas culturas. Por exemplo, no mito do Fausto, retomado por Goethe, e, depois dele, por Thomas Mann (em Doutor Fausto), já referente ao quadro histórico do nazismo. O pacto está no centro do nosso Grande Sertão: Veredas, romance estruturado na dúvida de Riobaldo sobre se teria ou não celebrado o pacto com o demônio. Ou, se este, que leva dezenas de denominações diferentes, existe ou não. Riobaldo conclui: não existe o diabo, existe o homem humano.
Enfim, vamos reencontrar essa discussão, se o termo cabe, em O Pacto da Viola, através do personagem Alex (Wellington Abreu), músico sertanejo mal sucedido que deseja tocar como seu pai, Lázaro (Sérgio Vianna). Alex trabalha num matadouro e acaba voltando para a cidade do pai, a mineira Urucuia. Chega às vésperas da Folia de Reis e encontra o pai, capitão da folia, adoentado.
O ambiente é dominado pela agroindústria. Uma grande fazenda de soja suga toda a água do rio, fecha estradas, torna-se a única opção de emprego da região, explora a população com sub-empregos e contamina tudo com agrotóxicos.
Na cidade não há lugar também para a música de Alex, um sertanejo raiz. Ele tenta em vão se apresentar num bar local e vender seus CDs, que não são mais aceitos ("ninguém mais compra CD, meu filho", diz a dona de uma venda). Nesse mundo hostil e resignado com sua sorte, apenas uma personagem, a mocinha Joyce (Gabriela Corrêa), mostra-se inconformada - numa frase, quer trocar o mar de soja que a circunda por um mar de verdade, na Bahia.
Ela é a única a romper o ciclo vicioso da região, que funciona à base de uma série de crenças religiosas e hierarquias. O pacto é algo por fora, uma transgressão celebrada por violeiros desejosos de se tornarem virtuosos do instrumento. A crença de instrumentistas no pacto é muito difundida - basta lembrar do mítico músico de blues Robert Johnson, que o celebrou em Me and the Devil.
Achei interessante que, nesse limite entre o real e o sobrenatural, o filme tenha mantido uma ambiguidade sóbria, do tipo "no creo en las brujas, pero que las hay las hay". A ambivalência permite que os crentes interpretem tudo como sinais da presença do maligno ou do divino; um olhar laico vê o mesmo, mas de outra maneira, como eventos naturais - por exemplo, uma viola que tomba, um boi picado por uma cobra, etc. Aconteceram por acaso ou são testemunhas de um poder maligno?
O Pacto da Viola não deseja impor uma crença ou uma descrença ao público. Essa dualidade faz a força da obra. Apenas destaca quem não se conforma com opções fechadas e tem a coragem de correr atrás do seu sonho.
Curtas
Inflamável (DF), de Rafael Ribeiro Gontijo. No começo vemos cenas de destruição das hordas golpistas do 8 de janeiro. Em off, uma voz de mãe, exorta o filho a se comportar e contratar um bom advogado para defendê-lo. O bombeiro Carlos (Eduardo Gorck) foi suspenso e volta à ativa depois de ter participado das depredações em Brasília. Mas o lado sombrio de sua personalidade continua à espreita. Bom curta, com interpretação dedicada de Gorck. Interessante a ligação entre os atentados políticos e uma psicopatia de base de um dos participantes, sem que esse elo pareça forçado.
Javyju - Bom Dia (SP), de Kunha Rete e Carlos Eduardo Magalhães. Como diz o filósofo Mark Fischer, "é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo". Então, é crível supor que num futuro próximo, a Terra tenha sido devastada pela inesgotável cobiça dos homens brancos e apenas os povos indígenas sobreviveram, graças à proteção dos encantados. A distopia, co-dirigida por uma cacique indígena e um cineasta branco é inteligente e escapa da mesmice.
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