PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Cine BH 2024: o vigor polêmico de 'Clube de Mulheres de Negócios'

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio

 

Diário crítico (1) 

BELO HORIZONTE - Com homenagem à cineasta Anna Muylaert, começou a 18ª Cine BH. Após a entrega de troféu, houve a exibição do longa-metragem da homenageada, Clube das Mulheres de Negócios, que já havia competido no Festival de Gramado no qual recebeu o Prêmio Especial do Júri. Entre a crítica, houve quem achasse pouco. Muita gente o tinha como favorito do festival gaúcho, não apenas pela atualidade temática como pela inventividade da realização.

PUBLICIDADE

É um filme que trabalha com a inversão de clichês de gêneros, mas não se contenta com essa primeira crítica à sociedade machista. Vai além e incorpora elementos históricos e estruturais da sociedade brasileira.

Não é um filme fácil. Exigente, em comparação com um dos seus trabalhos anteriores, o ótimo Durval Discos, Anna costuma dizer que este era um filme de amor, enquanto o atual é um filme de raiva. Foi gestado ao longo da pandemia e do governo desastroso de Jair Bolsonaro. Leva as marcas da perplexidade, de um país tentado pelo abismo e à beira da decomposição.

No entanto, desse caos, surgem, como reação movimentos que podem ser considerados progressistas, mas as vezes com dificuldades estratégicas para consolidar suas conquistas. É assim a dialética social. Surpreendente é complexa.

 

Enfim, Clube das Mulheres expressa um período em que a sociedade se move, e talvez para um futuro mais civilizado e equânime, mas com os ânimos exasperados, de punhos cerrados, como costuma acontecer nas disputas por espaço. É um momento bélico, de ajuste de contas e as reconciliações, caso aconteçam, ficam para depois.

Publicidade

Como inversão dos clichês de gêneros,  Clube das Mulheres de Negócios coloca-se como um espelho invertido. As mulheres que se reúnem no tal clube são poderosas, abusivas, autoritárias, algumas com problemas com a justiça, adoram armas de fogo, etc. Os homens ocupam posição subalterna, passiva, dócil, subalterna. São maridos fracos, colocados à parte, enquanto as mulheres debatem negócios - e negociatas. Num clube de luxo, são servidas por rapazes bonitos, de shortinho, troféus sexuais.Uma dupla de repórteres - homens - é convocada para cobrir a reunião no clube e entrevistar as poderosas

A ideia, pelo menos, nessa fase inicial da obra, é colocar um espelho no qual os homens se vejam refletidos em todo o autoritarismo e desmandos típicos da sociedade machista. Sente-se o grito de revolta por trás das imagens.

Seria um filme óbvio, caso ficasse apenas nisso. Por sorte, Anna Muylaert é uma cineasta de recursos, que não se contenta com pouco e não se limitaria a propor um retrato caricato de uma sociedade injusta pela via da inversão. Seria muito pouco. Vai além do ponto de partida e evolui para uma obra que se desenvolve em outras direções e atalhos imprevisíveis. Melhora demais do meio para o fim, quando as próprias contradições das "empoderadas" começam a colocá-las em xeque.

Sem dar spoiler, pode-se dizer que a dimensão da obra se amplia para uma crítica geral do poder e de como a soberba no domínio sobre os outros e sobre a própria natureza pode levar a todos e todas ao caos.

Também é uma obra de muitas camadas e isso no sentido quase literal do termo. Há o luxo do clube na superfície, mas também os porões, os baixios nos quais acontecem coisas inimagináveis na parte de cima. Essa disparidade entre estratos da narrativa funciona em regime de metáfora da própria sociedade brasileira, que, por tradição, se apresenta como cartão postal escondendo uma realidade bem diferente da que opera no porão.

Publicidade

Esteticamente, Clube das Mulheres me pareceu uma obra muito sólida, com registro fotográfico preciso da craque Barbara Alvarez e trilha sonora de André Abujamra, que faz também um pequeno papel como um dos maridos dominados pelas ricaças.

PUBLICIDADE

Algumas cenas de impacto ficam na retina e na lembrança dos espectadores. Em especial uma, de assédio invertido, quando o jovem jornalista se vê acossado sexualmente por uma das madames, interpretada por Grace Gianoukas. "É para mostrar aos homens o que nós sentimos nesse tipo de situação", disse a atriz no debate em Gramado. Um formidável elenco feminino está em cena com, além de Grace, Cristina Pereira, Irene Ravache, Louise Cardoso, Katiuscia Canoro, Polly Marinho, Helena Albergaria, Shirley Cruz, Maria Bopp e Ítala Nandi.

Tudo funciona no sentido de contemplar as questões de gênero e identitárias como manda a grande pauta contemporânea, "que está mudando o tecido da sociedade", acredita a diretora. Por outro lado, ao propor uma crítica concreta do poder - masculino ou feminino - o filme evita recolher-se ao nicho específico do identitarismo puro e duro. Avança, pelo menos na primeira leitura que faço da obra.

Na conversa que tivemos com a diretora, no dia seguinte à exibição aqui em BH, perguntei se o filme tematiza essa divisão atual nas forças progressistas entre a esquerda identitária ou woke, e a mais tradicional, centrada nas desigualdades e nas questões de classes sociais, e que, pela polarização mais uma!) vem entravando o debate. Ela acha que sim, mas entende que essas fronteiras acabem por cair, com espaços mais colaborativos entre os estrofes progressistas da sociedade. Tomara.

Voltando ao filme, esse avanço parece ser sua maior virtude, mas, em todo caso, indica um deslocamento de preocupações da autora. Em Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert é mais política ao indicar os efeitos da mobilidade de classe sobre a estrutura dos privilegiados do país. No caso, a filha da empregada doméstica que "tira a vaga" na faculdade do filho da família burguesa. Em O Clube das Mulheres de Negócios, a temática de classes é posta de lado em proveito das questões de gênero, mas, como já disse, com abertura para a discussão do poder, dos seus desvarios e suas ilusões, recoloca a temática social em seu conjunto ao apontar os fatores que podem nos levar à breca seja lá quem for que o exerça com irresponsabilidade.

Publicidade

Na releitura, Clube das Mulheres de Negócios me pareceu ainda um filme consistente, que se presta muito bem a debates importantes para nossa vida contemporânea - caso haja disposição ainda para esse tipo de debate nesse clima de irracionalidade que ainda nos envolve. Em todo caso, ele me parece (e isso é corroborado pela diretora) um grito de revolta para o estado de coisas dos anos 2018-2022, e que sai digerido nessa salada tropicalista que é o terço final de Clube das Mulheres de Negócios. De certa forma, é o Brasil exposto na tela, mas de forma grotesca e invertida. Talvez para nos reconhecermos melhor.

O filme tem estreia prevista para 28/11/2024.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.