Diário crítico (7)
FORTALEZAs - O festival trouxe uma surpresa para encerrar a mostra competitiva: A Bachata do Biônico, da República Dominicana. dirigido por Yoel Morales. Este filme, o último concorrente da mostra de longas-metragens ibero-americanos, é uma obra inclassificável, quase um "extraterrestre" no contexto do cinema contemporâneo. Trata-se de uma comédia maluca ambientada em becos e cortiços, povoada por personagens viciados em crack e outras substâncias, entrelaçada com a história de amor entre o Biônico do título (interpretado por Manuel Raposo) e Flaca (Magrela), uma jovem internada em uma clínica de reabilitação.
O filme também flerta com a metalinguagem: um documentário está sendo feito, no qual o Biônico é o protagonista, e a câmera acompanha sua vida e a de seus amigos. Nesse sentido, A Bachata do Biônico contém um filme dentro do filme, explorando como a presença de uma câmera pode alterar o comportamento dos filmados.
Na tela, o que se vê é algo febril e caótico, com planos rápidos e uma montagem fragmentada. A sucessão de gags nem sempre provoca risos e, à medida que acompanhamos a vida descompassada e sem rumo dos personagens, o que se instaura é uma sensação de desalento, mais do que de graça. Quando o ritmo finalmente se acalma e a narrativa chega ao seu clímax, quem espera um desfecho redentor pode se sentir frustrado.
No entanto, é impossível negar que o filme lança um olhar não preconceituoso sobre esses indivíduos marginalizados. A Bachata do Biônico pode ser tudo o que se quiser, mas não se pode acusá-lo de ser abusivo com relação a essas pessoas. Durante o debate após a exibição, o ator Manuel Raposo enfatizou que o filme evita qualquer tipo de caricatura. Aliás, a mistura entre atores profissionais e personagens reais é um dos pontos mais interessantes do filme. Nas cenas da clínica de reabilitação, por exemplo, todos os participantes são, de fato, dependentes químicos em processo de recuperação.
O filme também se distingue por não ser moralista - uma virtude rara em um momento tão carola, repleto de eufemismos e hipocrisia. Os diálogos são francos e diretos, especialmente quando abordam temas como drogas e sexualidade.
Apesar das diferenças estéticas, A Bachata do Biônico me remeteu a filmes do cinema marginal brasileiro. Não apenas pela escolha de personagens à margem da sociedade, mas também por certos traços estilísticos, como a verborragia, a grosseria intencional e a linguagem desbocada. Com sua aura de rebeldia, A Bachata do Biônico pode dialogar intensamente com o público jovem.
Por fim, um esclarecimento: "bachata" é um ritmo e uma dança originária da República Dominicana, que permeia toda a narrativa do filme, imprimindo seu andamento e seu clima.
Curtas
Dona Beatriz Nsimba Vita, de Catapreta (MG): Uma animação visualmente encantadora que tenta retratar a figura lendária de Kimpa Vita, uma mulher congolesa que cria seu próprio povo, usando o poder de gerar replicantes de si mesma. A história está repleta de alusões à resistência dos povos oprimidos pelo colonialismo, mas, para ser honesto, tais elementos não são facilmente percebidos na primeira (ou até na segunda) exibição do filme. É uma obra que exige mais reflexão.
Todas as Memórias que você fez pra mim, de Pedro Fellipe (PE): A história de um casal gay idoso, em que um dos parceiros, artesão, sofre de Alzheimer e é cuidado pelo outro. O filme é sensível e bem construído, transmitindo de forma eficaz a dor da perda de memória e os impactos que essa doença tem sobre a vida familiar. Vale destacar que um número crescente de filmes sobre o Alzheimer tem chegado às telas, refletindo uma preocupação social crescente sobre essa condição.
Bolinho de Chuva, de Cameni Silveira (PR): Um retrato típico do interior brasileiro, que evoca tradições familiares. Uma criança brinca no quintal enquanto uma tempestade se aproxima, observando encantada sua avó fazer uma simpatia para impedir a chuva. O filme é mais sensorial do que narrativo, com ênfase em detalhes visuais ao invés de diálogos. A cineasta acredita no poder da imagem, algo que se reflete na beleza e na simplicidade do filme.
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