Diário crítico (5)
FORTALEZA - En la Caliente se explica pelo subtítulo: Contos de um Guerreiro do Reggaeton. Quem é esse guerreiro? O autonomeado Candyman, que depois mudou ou C por K e começou a se assinar Kandyman, nome artístico de Rubén Cuesta Palomo. Agora voltou a se chamar Candyman e tem perfil no Instagram: Candyman Oficial. É um dos responsáveis, talvez o principal, pela criação do Reggaeton, música contestatória moldada pela fusão de ritmos cubanos com o reggae jamaicano.
Com a ilha isolada (com perdão da redundância), como eles fizeram para ouvir (e deixar-se influenciar) pela música que celebrizou Bob Marley? Colocando-se em Santiago de Cuba, na outra extremidade da ilha em relação a Havana, e montando antenas improvisadas que permitiam captar programas de rádio e transmissões de shows ao vivo da Jamaica. É apenas mais um dos exemplos da criatividade cubana, que quebra o isolamento por meio de "jeitinhos" e faz funcionar automóveis americanos dos anos 1950, verdadeiras peças de museu sobre rodas.
O filme dá bem ideia da revolução (se o termo cabe) embutida no reggaeton: multidões de jovens embalados num ritmo poderoso e com letras muito liberais, para dizer assim. Lembram a pulsação dos bailes funks brasileiros, que seduzem tanto os jovens quanto inquietam a vizinhança, que sente algo de ameaçador nesses espetáculos que são, também, demonstrações de força.
O filme mostra, com agilidade, como esses artistas se colocaram à margem de um poder cultural muito controlador. Fazem seus shows sem permissão de ninguém, gravam suas músicas em estúdios domésticos e imprimem CDs no quintal de casa. Vendem pelas ruas. Tudo informal e dificilmente controlável, embora o filme mostre cenas de algumas escaramuças com a polícia.
As letras, em especial, parecem incomodar os dirigentes da Ilha. O próprio Raúl Castro é visto criticando a falta de modos com que os cantores de Reggaeton se expressam.
No fundo, En la Caliente mostra a arte como fator de transformação social e a falta de liberdade artística e de opinião em Cuba. Exprimem a pulsão, e os anseios de uma juventude que já nada tem a ver com a revolução dos barbudos, aquela que inspirou as esquerdas de todo o mundo, nos já distantes anos 1960, com seus ícones Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos.
Há uma cena que me pareceu engraçada, quando Candyman grava num estúdio cuja parede é tomada, inteiramente e em vermelho, por uma imagem clássica do Che Guevara. Aquilo poderia significar algum tipo de continuidade entre ideais revolucionários e as aspirações da juventude, de que Candyman seria um dos porta-vozes? Nada disso, me garante o diretor do filme, Fabien Pisani. Provavelmente foi lá colocada pelo dono do estúdio, como uma maneira de fazer média com os poderes constituídos. Pergunto se a nova geração teria alguma conexão com os ideais da revolução, ao menos com suas conquistas mais evidentes, educação e saúde? Nenhuma conexão, ele garante e essa ruptura é o principal erro dos dirigentes revolucionários, a começar por Fidel Castro.
Chegamos a isso: Che Guevara seria apenas uma foto da parede (Mas como dói, diria Drummond)? Um ícone que se estampa na camiseta, um signo de rebeldia, despido de qualquer significação histórica precisa?
Curtas
Eu sou um pastor alemão, de Angelo Defanti (animação). Boa animação, história do pastor alemão (voz de Mateus Solano) que enfrenta uma rebelião entre as ovelhas. Em crise de identidade, o pastor sofre a influência de uma sedutora loba (voz de Alice Braga). O desenho é simples, quase esquemático e envolve com esse enredo de insubordinação e identidade posta em questão. Solano faz o seu pastor com sotaque alemão, que é muito engraçado.
Salmo 23, de Lucas Justiniano e José Menezes, é um filme bastante duro que acompanha o trabalho de uma fotógrafa da polícia, registrando cenas de suicídios. A pegada, no entanto, não é mórbida, aponta para a fragilidade da vida. Homens acabam com a vida muito mais do que as mulheres. Isso é estatística.
Tiramisù, de Leônidas Oliveira. O doce italino, de origem vêneta, simboliza, de maneira mais ou menos transversal, a abertura de uma localidade pequena para o mundo, o vasto mundo. Uma garota trans, sentindo-se oprimida, quer sair da pequena cidade e ganhar novos horizontes. Pode fazê-lo a bordo de uma bicicleta? A cena final é uma espécie de resposta - bastante ambígua e, segundo o diretor, origem de muita polêmica. Filma em modo delicado e preciso. Bonito filme.
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