Diário crítico (6)
FORTALEZA - Antes da apresentação, Linda, de Mariana Wainstein, era falado nos corredores do festival como sendo uma espécie de 'Teorema' feminista. A alusão era à polêmica obra de Pier Paolo Pasolini, de 1968. Esta trazia para dentro de uma família burguesa um enigmático personagem, vivido por Terence Stamp, que a desestabilizava. Eros destruindo o Tanatos da burguesia? Sim, talvez.
Voltando a Linda, há mesmo pontos de contato com a obra de Pasolini, mas apenas alguns. Linda (Eugenia 'China' Suárez) é uma beldade, contratada como empregada doméstica numa casa burguesa. Pai publicitário rico, esposa dondoca, dois filhos adolescentes, uma garota e um rapaz.
Diligente e responsável, Linda, que aliás se chama Deolinda, vai dando conta do trabalho. Mas não deixa de ser insinuante para todos os membros da família. Há um magnetismo sexual que atravessa as relações entre as pessoas. E também essa curiosa relação de simetria-assimetria que existe entre patrões e empregados, e que tão bem conhecemos no Brasil. São "como da família", mas não muito. Lembra, nesse ponto, o clássico A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, em que as proximidades são sempre pontuais e aparentes, mas a assimetria de classes acaba prevalecendo.
No debate, Mariana Wainstein, falou de sua proximidade com o cinema francês, em especialmente a comédia de humor negro. De fato, seu filme, em certos pontos, mostra contato com a obra de Claude Chabrol, um fino observador das relações entre burgueses e empregados - como em uma de suas obras-primas, La Cérimonie (Mulheres Diabólicas, no Brasil).
Muito bem filmado, Linda revela uma diretora segura já em sua estreia em longas-metragens. A casa, uma verdadeira mansão, é outra das "personagens" e é em seus quartos, corredores, sua sala de jantar, na beira da piscina, nas festas, que se passam os fatos fundamentais do filme. É mais que ambientação: a habitação dá sentido aos atos e diz muito sobre os personagens. Por exemplo, o escritório do publicitário, com suas relíquias, seus trunfos e triunfos, esboça um perfil do personagem.
De certa forma, a história põe em cena o poder de coesão da burguesia que, mesmo ameaçada por suas fragilidades, insegurança, contradições e desejos mal confessados, consegue no final tirar de cena os que a ameaçam. A estratégia pode ser doméstica, como neste filme, ou coletiva, como o apoio à extrema-direita para manter privilégios que julga eternos.
Apesar de feito no quadro do destruidor governo Milei, o filme não é demonstrativo, não defende teses de maneira mecânica e deve ser decifrado a partir das impressões deixadas em seus espectadores. Esta é apenas uma delas.
Curtas
Os mortos resistirão para sempre, de Carlos Adriano. Na sua linha habitual de filmes de montagem, ou seja, um trabalho realizado com imagens alheias, Adriano realiza o que chama de cinepoema sobre a atual tragédia palestina. Imagens fortíssimas, entrelaçadas de falas de Edgar Morin e Noam Chomsky, e um poema de Mahmud Darwich, compõem uma obra poderosa, para não esquecer. Brilhante.
Maputo, de Lucas Abrahão. Análise do nascimento das figuras de poder a partir da infância. Um garoto é desafiado por um grupo de outros meninos para realizar certas ações de risco, rito de passagem para se tornar um "maputo", alguém capaz de dominar o vento. Tem lá suas qualidades, mas, na revisão, me pareceu um tanto mecânico. Um desfecho não-realista conta pontos em sua avaliação.
Fenda, de Lis Paim. É um bonito filme sobre a tentativa de reaproximação entre mãe e filha. Longo, comovente, detalhista, trabalha com as sutilezas de um passado mal elaborado, com significações diferentes para mãe e para filha. Conseguirão conciliar essas duas memórias distintas?
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.