Diário crítico (4)
FORTALEZA - A história de Rosa (Paulina García), o espectador deverá desvendar aos poucos. Ela parece uma mulher de meia-idade, viúva, sozinha e com conflitos familiares com o filho e a nora. Conhecer outro homem pode ser uma saída para uma vida talvez vazia. Pode ser. É o que se verá.
Milonga, terceiro concorrente da mostra competitiva de longas, é dirigido pela uruguaia Laura González. É sua opera prima, como dizem os hispânicos. Ou seja, seu longa de estreia. Mostra bastante segurança nesse primeiro filme. Os elementos técnicos estão bem colocados - roteiro, fotografia, montagem. Fazem uma obra coesa, esteticamente.
Mas seu grande trunfo mesmo é um elenco de ponta, a começar por Paulina García, uma atriz de nuances, bastante conhecida do público latino-americano por Gloria e outras películas de sucesso. Joga no minimalismo dramático, no qual um olhar, um franzir de sobrancelhas, um sorriso triste dizem mais do que dez discursos.
Além de Paulina, temos no elenco Cezar Troncoso (de O Banheiro do Papa e do brasileiro Hoje, de Tata Amaral), e Jean-Pierre Noher num pequeno papel. Notável também é a presença solar de Laila Reys como Margarita, a amiga bem resolvida de Rosa. Enfim, um elenco muito equilibrado, talentoso, no qual se destaca também Eduardo da Luz, como Paquito, o companheiro alto astral de Margarita.
Durante boa parte do tempo temos a impressão de que se trata de mais um exemplar do estilo uruguaio, minimalista, inteligente, levemente irônico e de uma comicidade discreta, ainda que trate de temas "sérios". E é bem isso. No entanto, alguns flash-backs inquietantes, algumas viradas narrativas de última hora, produzem espanto no público.
Um deles, que não posso nomear (a ditadura do spoiler impede), não agradou parte do público e muito menos a crítica. Parece inverossímil o ódio que filho e nora têm da personagem de Paulina, a ponto de proibirem que ela veja o neto. O que eu disse à diretora (e ela aparentemente não gostou) é que a vida real não precisa ser coerente, lógica. Em geral não é. Qualquer bizarrice de comportamento ou pensamento é possível no ser humano. Qualquer aprendiz de psicanálise sabe disso. No entanto, na ficção, as pessoas pedem verossimilhança. Pedem "verdade" à obra.
Grandes diretores sabiam disso. Em suas conversas com François Truffaut, Alfred Hitchcock mostrava várias vezes o receio de "perder o público", como ele dizia. O público é desconfiado e, se vê artificialidade, falta de lógica ou de consistência, "desce do filme". Sai da obra, em especial se está dentro de uma trama narrada de modo realista, supostamente uma imitação do real (não é), mas que deve fazer sentido.
Na minha opinião, nessa parte final, Milonga corre o risco de "perder o público". Na conversa com a diretora, ficou patente o desejo de um roteiro, escrito por ela, super construído. Era preciso que a maior parte dos personagens masculinos fosse tóxica. Era preciso ter um personagem negro e, este sim, não precisava nem podia ser tóxico - pelo contrário. Era preciso que as mulheres e, em especial Rosa, estivessem sob o domínio do patriarcado, que conduz à violência e à sua reprodução, etc. E que dele se libertasse no final. Com todas essas casas preenchidas, o resultado foi uma construção muito bem pensada, mas que parece um tanto artificial, até mesmo no que sugere de irracional ou de paradoxal. É muito bom filme, pelas qualidades já expostas. Deixa uma certa frustração em seu desfecho.
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