À noite, mais dois curtas, dois longas (um deles com mais de duas horas), homenagens no palco e ainda uma premiação, justamente do da Mostra Gaúcha. Saímos de lá 1h30 da manhã, sob 3 graus de temperatura, em busca de um restaurante que nos acolhesse. Encontramos. E fomos dormir de madrugada. Mesmo porque esses encontros são deliciosos. Revimos amigos queridos, como os cineastas Giba Assis Brasil e Ana Luiza Azevedo, que estavam aqui na serra. Tudo isso tem um preço e acorda-se no dia seguinte com o famoso gosto de cabo de guarda-chuva na boca e a sensação de que um trator nos atropelou. Bom, é isso. E os filmes?, perguntarão vocês.
Até agora, o brasileiro Éden, de Bruno Safadi, me pareceu o mais consistente. Safadi, discípulo de Julio Bressane, trabalha intensamente a forma cinematográfica. Mas, pouco a pouco, deixa de fazer um cinema meramente formalista (essa doença infantil da cinefilia) e embebe de vida a sua temática. Em Éden, Karine (Leandra Leal), grávida de 8 meses, perde o marido, assassinado. Ela é confortada pelo pastor Naldo (João Miguel), que tenta aproximá-la de outra grávida, a mulher do traficante que matou o marido de Karine. É uma situação complexa, levada num grau de intensidade próximo às vezes do insuportável. Trilha inquietante de Guilherme Vaz, uma filmagem intensa, visceral, próxima dos sentidos do corpo. Muito, muito bom.
O outro brasileiro, justamente o filme que avançou pela madrugada de domingo para segunda, foi o esperado Tatuagem, de Hilton Lacerda. Há um diálogo claro entre Tatuagem e Febre do Rato, de Claudio Assis, do qual Lacerda é roterista. Ambos falam de ambientes de transgressão, em linguagem libertária. No de Assis, esse ambiente é hetero; no de Lacerta, predominantemente gay. Ele ambienta a história em 1978, quer dizer sob a intolerância da ditadura militar. Irandhir Santos (mesmo ator de Febre do Rato) é Clécio, líder do cabaré Chão de Estrelas, um coletivo, teatro e cabaré de fundo anarquista. Clécio se envolve com um jovem recruta, Fininha, que passa a frequentar o ambiente. O filme apresenta cenas de sexo fortes, que seriam o seu motivo de escândalo anunciado aqui em Gramado. Acontece que talvez o escândalo já não seja mais possível, como uma vez se queixou Buñuel a Aragon (ou vice-versa, não lembro direito). Ou talvez o público, já anestesiado pelo cansaço da maratona, não tenha dado a devida importância ao caráter libertário do filme. Passou meio assim, em branco, digamos.
Suas qualidades estéticas são evidentes. A trilha, do DJ Dolores, é envolvente. O desejo de épater, de chocar, talvez pareça meio anacrônico; menos, é verdade do que em Febre do Rato, que em tese era ambientado no tempo contemporâneo. Tatuagem, ao menos, enraíza-se nos anos 70, em que esses coletivos, hetero ou homos, ou mistos, eram bastante comuns. Quem viveu, viu. Hoje, talvez, careçam um tanto de sentido, embora o neo-moralismo contemporâneo talvez já dê alguns sinais de cansaço. A ver.
O outro longa a comentar é o uruguaio O Pai de Gardel, de Ricardo Casas, que sustenta a tese de que Carlos Gardel, o ícone argentino, na verdade seria uruguaio de Tacuarembó. A tese não é nova. Eu mesmo a conhecia de outro filme sobre o assunto, visto num Cine Sul de mais de dez anos atrás. Há vários livros sobre o assunto, motivo de rixa entre uruguaios e argentinos (a rivalidade entre eles é de antologia). No documentário, de formato bem tradicional (entrevistas, basicamente), sobressai a figura Carlos Escayola, manda-chuva de Tacuarembó e suposto pai de Gardel. Escayola seria um priápico, um fauno que se casou com três irmãs, sucessivamente. Gardel seria filho ilegítimo de uma dessas moças. Segundo outra tese, Escayola teria engravidado a própria filha, fazendo assim do cantor e autor de El Dia que me Quieras não apenas filho ilegítimo mas fruto de um incesto. A história toda é muito bem interessante; não se sabe onde termina a verdade e começa o mito, mas é fascinante. Já o filme, em si, não é tanto.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.