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Opinião | Olhar 2024: Dilemas de uma cuidadora alemã e a sororidade brasileira

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Diário crítico (7)

CURITIBA - Mais um Olhar de Cinema vai chegando ao fim. Ontem foram apresentados os dois últimos longas das mostras competitivas - o alemão Ivo e o brasileiro Um Dia Antes de Todos os Outros. Hoje ainda tem filme, mas fora de competição. Os prêmios serão entregues à noite e depois haverá festa, para quem tiver disposição. Eu acordo cedo e pego o avião para Belo Horizonte, escala em São Paulo, rumo a Ouro Preto.

 

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Gostei de Ivo, que me parece um sólido drama alemão. Mas não dramalhão, como se poderia supor de antemão. Dirigido por Eva Trobisch, põe em cena a personagem-título, uma cuidadora de pacientes terminais. Ivo administra tratamentos paliativos domiciliares para aliviar o sofrimento de pessoas em final de vida. Uma delas é sua amiga pessoal, Solveigh, que sofre de uma doença degenerativa. O marido de Solveigh e Ivo são amantes, para complicar a história.

O fundo da obra é o debate sobre a abreviação voluntária da vida por parte de pacientes sem qualquer esperança, tema que vem sendo muito discutido na Europa. (No Brasil, nem entra na pauta pois ainda vivemos no tempo em que se debate se mulheres têm ou não direito ao aborto. País atrasado, como dizia Sérgio Buarque de Hollanda).

Enfim, dilemas humanos existem tanto no Terceiro como no Primeiro Mundo e Ivo enfrenta uma porção deles. Tem família, trabalha demais, o envolvimento emocional com pacientes a perturba e seus relacionamentos causam conflitos, um deles com implicação legal. Filme bem formatado, numa linha narrativa mais tradicional, mas que funciona perfeitamente para aquilo a que se propõe, trazer à baila questões contemporâneas quando confrontadas às eternas ambiguidades do ser humano. Destaque para a atriz Minna Wündrich, que torna crível e intensa sua personagem Ivo.

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O último concorrente brasileiro apresentado foi Um Dia Antes de Todos os Outros, de Fernanda Bond e Valentina Homem.

 

Começa com um grupo de jovens festejando na comunidade da Maré. Entre eles, Sofia, que é chamada ao celular pela mãe. Esta, Marli (Clarissa Pinheiro), trabalha na casa de uma senhora idosa que vai ser internada. O apartamento foi vendido pelo filho, que mora na Itália, e precisa ser desocupado. Marli chama a filha para que se despeça da idosa, sua madrinha, que permanece em mutismo completo. E a ajude a embalar objetos para desocupar a casa.

Temos aí, nesse início, algo parecido com um filme tornado referencial sobre a questão de classes no Brasil, Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Mas, aqui não se trata apenas da mãe que empregada em uma família de classe média alta e da filha que tem outras aspirações. Entra em cena a questão racial, obrigatória no cinema brasileiro contemporâneo. Marli é branca e a filha se autodenomina como negra. Ambas se desentendem sobre o tema, pois, como se disse no debate, "Marli não tem letramento racial". Ok.

Essa transversalidade não atrapalha o andamento da narrativa, no entanto. Integra-se. E reforça-se com a chegada da compradora, uma mulher negra, que se expressa em francês e canta em seu idioma natal para a idosa. Uma boa ideia, pouco aproveitada no filme.

Este é construído basicamente em dois espaços. No dos jovens, na comunidade, uma espécie de prólogo e, depois, quase todo o tempo no interior do apartamento. O desfecho, sobre o qual não vou dar spoiler, migra para outro ambiente.

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Filme quase todo feito e interpretado por mulheres, baseia-se na sororidade e no afeto entre elas - relações que não estão isentas de conflitos. No entanto, não aprofunda as questões e passa rápido demais por outras, deixando uma impressão de superficialidade. Destaque para Clarissa Pinheiro, que carrega o longa nas costas com sua graça mesclada de ternura. Ótima atriz.

Agora é ver quais serão os premiados. Abaixo, uma listagem de todas as mostras para vocês terem ideia da dimensão do festival.

Mostra Competitiva Brasileira (longa-metragem)

. "Praia Formosa", de Julia De Simone (90')

. "Quem É essa Mulher?", de Mariana Jaspe (70')

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. "Um Dia Antes de Todos os Outros", de Valentina Homem e Fernanda Bond (73?)

. "Tijolo por Tijolo", de Victoria Alvares e Quentin Delaroche (102')

. "A Mensageira", de Cláudio Marques (140')

. "Greice", de Leonardo Mouramateus, (110')

. "O Rancho da Goiabada, ou Pois É Meu Camarada, a Vida Não é Fácil", de Guilherme Martins (72')

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. "O Sol das Mariposas", de Fábio Allon (105')

Mostra Competitiva Brasileira (curta e média-metragem)

. "Povo do Coração da Terra", do Coletivo Guahu'i Guyra (39')

. "O Lado de Fora Fica Aqui Dentro", de Larissa Barbosa (25')

. "Rinha", de Rita M. Pestana (22')

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. "Se Eu Tô Aqui é Por Mistério", de Clari Ribeiro (21')

. "Capturar o Fantasma", de Davi Mello (12')

. "Caravana da Coragem", de Pedro B. Garcia (24')

. "Viventes", de Fabrício Basílio (20')

. "Cavaram uma Cova no meu Coração", de Ulisses Arthur (24')

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Mostra Competitiva Internacional (longa-metragem)

. "Os Paraísos de Diane" ("Les Paradis de Diane"), de Carmen Jaquier, Jan Grassmann (Suíça, 97') . "Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser" ("Je?t? Nejsem, Kým Chci Být"), de Klára Tasovská (Rep. Tcheca, Eslováquia, Áustria, 90?) . "Ivo" ("Ivo"), de Eva Trobisch (Alemanha, 104') . "Caminhos Cruzados" ("Crossing"), de Levan Akin (Suécia, Dinamarca, França, 105') . "As Noites Ainda Cheiram a Pólvora" ("The Nights Still Smell Of Gunpowder"), de Inadelso Cossa (Moçambique, França, Alemanha,Portugal, 92') . "Pepe" ("Pepe"), de Nelson Carlos De Los Santos Arias (Rep. Dominicana, Namíbia, Alemanha, França,122')

Mostra Competitiva Internacional (curta e média-metragem)

. "Nossas Ilhas" ("Nos Îles"), de Aiha Thalien (França, Martinica, 23') . "Caindo" ("Falling"), de Anna Gyimesi (Hungria, Bélgica, Portugal , 16') . "Contrações" ("Contractions") de Lynne Sachs ( EUA, 12') . "Uma Pedra Atirada", de Razan AlSalah (Palestina, Líbano, Canadá, 40 min) . "Desde Então, Estou Voando" ("O Gün Bu Gündür, Uçuyorum"), de Aylin Gökmen (Suíça , 19') . "Mamántula" ("Mamántula"), de Ion de Sosa ( Espanha, Alemanha, 45') . "Minha Pátria" ("Mawtini"), de Tabarak Abbas (Suíça, 13') . "Sonhos como Barcos de Papel" ("Des Rêves en Bateaux Papiers"), de Samuel Suffren (Haiti, 19?)

Mostra Novos Olhares (dedicada a longas que têm maior radicalidade em suas propostas estéticas, trilhando caminhos desconhecidos)

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. "Entre Vênus e Marte", de Cris Ventura (Brasil, 61') .  "Perdendo a Fé"  ("Die Ängstliche Verkehrsteilnehmerin"), de Martha Mechow (Áustria, Alemanha, 100') . "Idade da Pedra", de Renan Rovida (Brasil, 70') . "Jean Genet Agora" ("Jean Genet Ahora"), de Miguel Zeballos (Argentina, 75') . "Caixa de Areia" ("Bac a Sable"), de Lucas Azémar e Charlotte Cherici (França, 59') . "Geração Ciborgue" ("Cyborg Generation", de Miguel Morillo Vega (Espanha, 63')

Mostra Olhar Retrospectivo (Hou Hsiao-hsien - Taiwan)

. "A Assassina" ("Cike Nie Yin Niang", Taiwan, 2015, 105') . "Café Lumière" ("Kôhî Jikô", Japão, 2003, 108') . "Millennium Mambo" ("Qian Xi Man Bo", Taiwan, 2000, 119') . "Adeus, Ao Sul" ("Nan Guo Zai Jian, Nan Guo", Taiwan, 1996, 116') . "O Mestre das Marionetes" ("Xi Meng Ren Sheng", Taiwan, 1993, 142') . "Cidade das Tristezas" ("Bei Qing Cheng Shi", Taiwan, 1989, 157') . "Poeira ao Vento" ("Liàn Liàn Fengchén", Taiwan, 1986, 109') . "Tempo de Viver e Tempo de Morrer" ("Tóngnián Wangshì", Taiwan, 1985, 138')

Mostra Pequenos Olhares

. "O Sonho de Clarice", de Fernando Gutierrez e Guto Bicalho (Brasil, 83') . "Almadia", de Mariana Medina (Brasil, 8') . "Ana e as Montanhas", de Julia Araújo e Carla Villa-Lobos (Brasil, 13') . "Ária", de Arthur P. Motta (Brasil, 13') . "Camille", de Denise Roldán (México, 12') . "Casa na Árvore", de Guilherme Lepca (Brasil, 8') . "Lagrimar" , de Paula Vanina (Brasil, 14') . "Os Defensores de Típota", de Caio Guerra (Brasil, 14') . "Pororoca", de  Fernanda Roque e Francis Frank (Brasil, 6?)

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Mostra Olhares Clássicos

. "Era Uma Vez Beirute" ("Kanya Ya Ma Kan, Beyrouth"), de Jocelyne Saab (Líbano, 1994, 104') . "As Mulheres Palestinas" ("Les Femmes Palestiniennes"), de Jocelyne Saab (Líbano, 1974, 16') . "O Comboio do Medo" ("Sorcerer"), de William Friedkin (EUA, 1977, 121') . "Sem Chão" ("Losing Ground"), de Kathleen Collins (EUA, 1982, 86') . "Sherlock Jr.", de Buster Keaton (EUA, 1924, 45') . "A Guerra do Pente", de Nivaldo Lopes (Brasil, 1986, 45') . "Um é Pouco, Dois é Bom", de Odilon Lopez (Brasil, 1970, 94')

Mostra Mirada Paranaense

. "A Cápsula", de Ribamar Nascimento (longa-metragem, 92') . "Adam", de Ana Catarina (14') . "BAOBAB, de Bea Gerolin (10') . "Esse Navio Vai Afundar", de Luc da Silveira (6') . "Jacu Herói", de Pedro Carregã (7') . "Nada Ficou no Lugar", de Stefano Lopes (21') . "Prontuário nº415361", de Vino Carvalho (19') . "Quarto Vazio", de Julia Vidal (19') . "Terra Incógnita", de Waleska Antunes (9?)

Mostra Foco (Brasil)

. "O Canto das Margaridas", Coletivo Mulheres no Audiovisual PE (80') . "Lagoa do Nado - A Festa de Um Parque", de Arthur B. Senra (77') . "Não Existe Almoço Grátis", de Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel (74') . "Ouvidor", de Matias Borgström (74')

Mostra Exibições Especiais

. "A Transformação de Canuto", de Ariel Ortega e Ernesto de Carvalho (Brasil, 130') . "Mário de Andrade, o Turista Aprendiz", de Murilo Salles (Brasil, 92') . "Lista de Desejos Para Superagüi" , de Pedrio Giongo (Brasil, 72') . "Mário", de Billy Woodbury (Portugal, França, 120') . "O Patinador, A Vida, A Luta" ("The Roller, The Life, The Fight"), de Elettra Bisogno e Hazem Alqaddi (Bélgica, 83') . "Viva Volta", de Heloísa Passos (Brasil,15') . "Osório", de Heloísa Passos e Tina Hardy (Brasil, 12') . "Do Tempo que Eu Comia Pipoca", de Heloísa Passos e Catherine Agniez (Brasil, 18')

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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