
Apresentado em 2020 no Festival de Gramado, só agora Aos Pedaços, de Ruy Guerra, chega ao circuito. Aos 93 anos, Guerra é um dos nomes maiores do Cinema Novo, autor dos incontornáveis Os Cafajestes e Os Fuzis. Além de Aos Pedaços, tem novo filme para estrear, chamado A Fúria (este em parceria com Luciana Mazzotti), que participou do Festival de Brasília do ano passado. São trabalhos ousados, inquietos, de forte vertente experimental, características que fazem do nonagenário diretor um dos mais jovens cineastas em atividade no País.
De maneira inventiva, em Aos Pedaços Ruy investiga o tema da divisão da personalidade através de quatro personagens. Um bígamo, Eurico Cruz (Emílio de Mello), é casado com duas mulheres chamadas Ana e Anna (Simone Spoladore e Christiana Ubach). Mais um vértice se apresenta, um certo Eleno (Julio Adrião) que pode ser o demônio ou simplesmente um pastor evangélico, com linguajar de malandro, disposto a atormentar a todos em nome da palavra revelada. É um arauto da culpa, do pecado, essa dimensão indissociável a civilização judaico-cristã. Há também um ser, de aparência terrível, que pode ser um inseto gigante, ou uma lagosta. O narrador em off é o Titã Arnaldo Antunes, cuja voz é facilmente reconhecível.
O predomínio é do espaço fechado, embora as mulheres pareçam estar ora numa praia ora nas areias de um deserto. O tormento de Eurico é desencadeado uma carta o avisando de que está prestes a ser assassinado, por uma de suas esposas. Eleno o estimula a deixá-las "pois a mulher é fonte de todo pecado", ensina a Bíblia.
O filme é um quebra-cabeças, que pode ser fascinante para uns e tedioso para quem prefere narrativas lineares e mais claras. Não há propriamente uma "história" a ser acompanhada, mesmo porque não se sabe se as coisas se passam na "realidade"ou apenas na cabeça do homem ameaçado.
Para quem é cinéfilo, também pode ser um atrativo adicional decodificar referências e citações, do Orson Welles de A Dama de Shangai ao Bergman de Persona, passando por Robbe-Grillet ou mesmo David Lynch.
Os nexos lógicos se rompem e assistir Aos Pedaços pode ser uma experiência de abismo. Como o próprio título indica, a obra nos coloca diante de fragmentos e não de alguma totalidade. Isso não quer dizer que não tenha significado. Apenas, que estes significados podem ser múltiplos e mesmo contraditórios entre si. O cineasta trabalha com polissemias não com sentido fechado. E, talvez, mais que uma obra sobre o espaço, seja um experimento sobre o tempo, algo do tipo de O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais.
O rigor formal não impede que haja pistas, desde que não se reduza essa precisão de imagens a um fascínio pelo belo autocentrado. A figura feminina é desdobrada em duas, muito parecidas e com nomes quase iguais. Ana e Anna. Nomes palíndromos, que se podem ler de trás para frente e de frente para trás. Refletem-se, como nos espelhos. Há muitos espelhos no cenário, que multiplicam as figuras. Jorge Luís Borges, talvez outra referência de fundo, era fascinado pelos espelhos, que também o atemorizavam. "Os espelhos e a cópula são obscenos porque multiplicam o número de homens", escreveu. Essa visão niilista talvez encontre eco em uma das falas finais de Aos Pedaços, na qual o ser humano é definido como "insaciável predador de si mesmo".
Enfim, é embarcar na experiência do cinema ou recusá-la. Mas quem a recusa, não sabe o que está perdendo. Dignas de nota, a direção precisa de um mestre e a fotografia em preto e branco inspiradíssima de Pablo Baião. E um elenco em que atores e atrizes parecem dar o máximo de si a cada cena.