Professor faz o estágio obrigatório de serviço num vilarejo remoto da Anatólia. Quer ser transferido para Istambul, mas surge uma denúncia de comportamento inadequado com uma aluna. Ele e o amigo com quem divide o apartamento conhecem uma moça que perdeu uma perna num atentado. Ambos se interessam por ela, e ela por eles. A secura dessa sinopse talvez se inspire na do título do filme - Ervas Secas. Mas o fato é que, em seu 9º longa-metragem, o turco Nuri Bilge Ceylan traz um mundo. Um mundo inteiro, diga-se. Em minha opinião, Ceylan faz o cinema mais profundo e perturbador da atualidade.
Seus detratores dizem que os filmes são longos. De fato. Este tem três horas e dezessete minutos. Cada um desses minutos se justifica. Deve-se levar em conta que o tempo é sua matéria-prima. Ele precisa dessa extensão para mergulhar na vida humana, com seus infindáveis rodeios, contradições, complexidades intelectuais e morais. É também um cinema da intimidade, mas de uma intimidade que carrega em si as grandes questões da sociedade - como acontece na literatura de Anton Tchekhov, o autor russo com o qual Ceylan tem sido comparado com frequência.
Seu panorama, digamos, dramatúrgico, é a região da Anatólia, encantadora e desolada, dependendo do ponto de vista de quem a vê. Seus vilarejos ficam cobertos de neve pesada durante o inverno. E é nesse palco, e contra ele, que Ceylan coloca seus personagens.
Trata-os com um rigor de filmagem raro hoje em dia. Longos planos, câmera parada, como concentrada neles, a dialogar longamente, como se no tédio da neve houvesse tempo para que tudo fosse debatido com a necessária profundidade. O clima solar induz à superficialidade; o invernal, ao rigor e à densidade.
Mais uma vez, o que vem se tornando frequente no cinema contemporâneo, o ambiente escolar é dominante. Samet (Deniz Celiloglu)é professor. Cumpre um estágio obrigatório naquela localidade que detesta. Quer escapar de lá o mais rápido possível, mudar-se para Istambul, onde supõe estar a civilização. Mora na mesma casa com um amigo, Kenan (Musab Ekici). Leciona em uma escola medíocre, para alunos desconcentrados. Se desentende com uma das alunas, por um motivo banal, em aparência. Recebe, com surpresa, a acusação de que tanto ele como Kenan teriam se portado de maneira inadequada com a adolescente. Esta é um caso à parte, Sevim (Ece Bagci), pequena Gioconda com seu sorriso enigmático e cheio de sugestões ambíguas.
Também ambivalente é o comportamento de Samet na amizade que mantém com Kenan e, sobretudo, em relação à moça que chega depois deles, alguém ferida física e moralmente. Nuray (Merve Dizar, premiada em Cannes). Há muitos valores em jogo nessa série de relacionamentos, desenvolvidos contra o peso (e o torpor) do inverno. Samet se queixa da mediocridade moral do lugar, mas não fará parte desse mesmo conservadorismo quando confrontado a uma situação sobre a qual não exerce controle? Mas em Ervas Secas não se trata apenas da anatomia de um homem ainda jovem e bastante problemático. Trata-se, assim intuímos, da sociedade turca em seu todo, em seu torpor de inverno e que se prolonga, sem primavera à vista. Quando por fim vem o degelo, são apenas ervas secas e desoladas que brotam à vista. As almas estão igualmente secas. Apenas o elemento feminino, nas figuras da adolescente e da mulher ferida, se mostra capaz de trazer algum frescor a essa atmosfera sufocante.
Ceylan dirige com maestria, colocando em cena um registro realista bastante construído, que parece constante, até surgir, de surpresa, uma quebra da quarta parede. O dispositivo do cinema se expõe por breves momentos, suficientes para introduzir uma espécie de falha voluntária no processo de fascínio do espectador. Esse súbito distanciamento funciona como uma epifania estética - e existencial. Pelo choque, leva-nos à reflexão, sem que o encanto se reduza. Pelo contrário.
Ervas Secas é o fecho brilhante de um trilogia iniciada com Sono de Inverno (2014) e A Árvore dos Frutos Selvagens (2018). Cinema de reflexão sobre a condição humana: isso lá é possível? Ceylan prova que sim.
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