"Que estranho caminho, pai, eu tive de trilhar para te encontrar". Esta frase se encontra no novo filme de Guto Parente - não vou dizer se no início, meio ou fim.
Dá título ao filme e, de imediato, lembra a frase de um clássico de Robert Bresson, Pickpocket, que, por sua vez, é uma citação de Dostoievski. Mas, durante a projeção, me lembrou outra frase famosa, pelo menos parecida a esta: "Não está vendo, pai,que eu queimo?" Essa frase foi relatada a Freud por um paciente. O homem perde o filho e, exausto, adormece durante o velório. Em seu sonho, o filho o admoesta com a frase famosa: "Pai, não está vendo que eu queimo?" Assustado, o homem desperta e vê que, de fato, uma vela havia caído sobre o caixão do filho e ateado fogo aos tecidos que vestiam o corpo do menino. A história comovente está no clássico da psicanálise, A interpretação dos sonhos. Ilustra um bom número de aspectos do psiquismo humano, mas também evoca esse elo entre pais e filhos, que parece ir além da distância, e mesmo além dos limites entre a vida e a morte - e não é preciso ser religioso para acreditar nisso.
Na ficção de Guto Parente também comparecem os elementos do fantástico e do onírico na história de reencontro entre pai e filho. David (Lucas Limeira) é cineasta, mora em Portugal e volta a Fortaleza para apresentar seu filme em um festival. Vem a pandemia e tudo é suspenso. Mas ele quer também encontrar o pai, Geraldo (Carlos Francisco), que não vê há muitos anos. Quando o hotel em que David está hospedado fecha, esse reencontro é forçado, porque ele tem de encontrar um lugar onde morar até que consiga voltar para sua residência, na Europa.
O fantástico, introduzido de forma abrupta numa trama muito bem filmada, produz certo pasmo. Talvez seja essa mesma a ideia do fantástico: ser um raio em céu azul, produzir o efeito de estranhamento quando menos se espera por ele.
Na história (mas sem entregar muito do enredo), o pai de David é um autor de livros de auto-ajuda. Aconselha famílias a serem mais unidas e os seres humanos, mais generosos entre si. Há aí uma dissonância que será percebida pelo espectador na comparação entre o que Geraldo escreve e como se comporta em relação ao filho que vem procurá-lo.
Se a relação pai-filho se mostra cheia de arestas, a própria ambientação parece um tanto fantasmagórica, com uma Fortaleza semi-deserta devido ao isolamento forçado pela pandemia. Todos os que viveram esse período sabem que uma certa irrealidade pairava no ar. Não apenas por um desastre epidemiológico que ceifava vidas e atemorizava sobreviventes, mas pela maneira criminosa como o (des)governo de então "colaborava" com a doença, voltando-se contra a população. Quem viveu, e sobreviveu, viu. Talvez um dos grandes méritos do filme de Guto Parente seja captar esse clima, à maneira cinematográfica, quer dizer, valendo-se de mais imagens e menos discursos.
Estranho Caminho é mais um exemplar da forte safra cearense que tem chegado a festivais e ao circuito - como A Filha do Palhaço, de Pedro Diógenes, Mais Pesado é o Céu, de Petrus Cariry e, nesta sexta-feira, na abertura do Festival de Gramado, Motel Destino, de Karim Aïnouz, que já passou por Cannes.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.