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Opinião|Fale com Ela (mesmo que ela não escute)

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

 

Foi um grande prazer rever Fale com Ela 20 anos depois. Havia visto o filme em 2002, na Espanha, em companhia da Rô, num cinema da Gran Via, em Madri. Lembro do nosso encantamento. Até brincamos: não vamos ver mais nada até o fim da viagem para ficarmos com esse filme na cabeça. Promessa vã, claro, de fanáticos por cinema habituados a uma dieta de ao menos dois filmes por dia.  

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Fale com Ela ressurge agora na mostra de Pedro Almodóvar da Netflix, para acompanhar a estreia de Mães Paralelas na plataforma. Já vimos vários outros, Mulher à Beira de um Ataque de Nervos, De Salto Alto, etc. Todos valem a pena, quando a alma não é pequena. De Almodóvar, só não quero saber daquela comédia do avião, insuportável. 

Fale com Ela traz esse personagem incrível, vivido por Javier Câmara. Benigno. Figura ambígua, que espia a maravilhosa Alicia (Leonor Watling) e torna-se seu enfermeiro depois que a moça sofre um acidente. Ele "fala com ela", mesmo a garota estando em coma profundo, irreversível segundo os médicos. Falar, com talvez quem não ouça, é um ato de pura fé. De amor. 

 Há algo de Hitchcock no clima montado em boa parte do tempo em um hospital. Esse cuidador devotado manipula um corpo inerte apenas por razões médicas ou há uma sexualização implícita no contato com esse corpo, exposto em toda a sua beleza? O filme joga com essa ambiguidade. 

Assim como joga com o outro personagem, o do argentino Marco (Dário Grandinetti). Ele é um jornalista vivendo a ressaca de um abandono amoroso. Cura-se com a toureira Lydia, interpretada por Rosario Flores, ela também em fase de dor de cotovelo. 

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Após o acidente na tourada, serão dois os corpos femininos inertes e dois os homens apaixonados por essas mulheres, que se tornam grandes amigos pelo encontro casual na clínica de tratamento. Há uma camada adicional de ambivalência. Um é hétero convicto. O outro é tido por todos como homossexual.

O filme é banhado pelo tom caloroso próprio de Almodóvar. Aqui ele já tem a maturidade de não se deixar levar pelo desejo adolescente de épater (la bourgeoisie). É mais profundo. E mesmo por isso mais contundente, permite-se tratar de coisas ainda mais incômodas. Talvez pouco assimiláveis para os (as) mais sensíveis espectadore(a)s da atualidade. Hoje tudo ofende, tudo choca e tudo perturba. Então, vai-se às redes sociais para "cancelar" ou "problematizar" o cineasta. Daí vislumbramos no horizonte uma arte inócua, feita para não desagradar, chocar e portanto proibindo-se qualquer ousadia. Uma arte para todos - e para ninguém. 

Pelo contrário, em Fale com Ela ficamos sem chão. Almodóvar nos conta a trajetória de um maníaco?  Ou se trata apenas de uma grande história de amor? 

Fico com a segunda hipótese, talvez seduzido pela interpretação brilhante de Javier Câmara, pelo tom amoroso que atravessa o filme e pela música encantatória de Alberto Iglesias. De qualquer forma, o filme mexe com a gente. Mexeu comigo há 20 anos e continua a produzir o mesmo efeito. 

Num momento de muita aproximação de Almodóvar com o Brasil, uma canção de Tom e Vinicius, Por Toda a Minha Vida, na voz de Elis Regina, é usada numa cena de tourada. A violência da "corrida de toros" contra uma música cheia de ternura. Um jogo de contrastes. Um paradoxo cênico e auditivo que dispensa palavras. 

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Em outra sequência, o próprio Caetano Veloso entra em cena interpretando um despedaçador Cucurrucucu Paloma, e arrepiando o emotivo personagem de Dário Grandinetti, Marco. Para falar a verdade, como Marco, nós também ficamos com os "pelos en Punta" ao ouvir Caetano. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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