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Opinião | Gostoso 2024: 'Manas', a infância agredida e o tema polêmico da vingança

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
 

Diário crítico (4)

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São Miguel do Gostoso/RN - Manas, de Marianna Brennand, foi o último longa apresentado na mostra competitiva de Gostoso. E provocou uma inédita salva de palmas durante a projeção, com uma cena que deu o que falar também no debate no dia seguinte à sessão.

A cena foi chamada de catártica ou vingativa, segundo determinado ponto de vista, ou defendida como violência válida ou justa, segundo a opinião oposta. Quem teria razão? Vejamos: por uma questão de spoiler, não se pode descrever ou situar a dita cuja cena; deixemos portanto em suspenso essa descrição e vamos discutir apenas em tese. Vão ao cinema, assim que o filme estrear, e cheguem ao seu próprio veredicto.

Deve-se dizer que Manas é obra de excelente qualidade técnica, o que foi reconhecido internacionalmente ao ser premiado como melhor filme em uma das mostras mais prestigiosas que compõem o Festival de Veneza - a Giornate degli Autori, vulgo Jornadas dos Autores. A seção é concebida para acolher obras ousadas, tanto do ponto de vista temático como de linguagem cinematográfica.

Manas toca em tema tão desagradável quanto necessário de ser abordado - a violência sexual contra crianças. Situa-se na Ilha de Marajó, no norte do país. Há estudos sobre o que se passa por lá (mas não apenas lá) a respeito desses crimes.

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Manas apresenta um núcleo familiar composto por mãe, pai, e filhas. Uma delas, a mais velha, já saiu de casa, por motivos ignorados. Outra, Marcielle (Jamille Correa), de 13 anos, se espelha na irmã que foi morar em outra parte. Há outra garota, ainda mais jovem. Todo um clima de tensão vai sendo montado, e de forma progressiva, em torno dessa família e da comunidade da qual faz parte. A mãe parece não querer enxergar o que se passa em sua casa. O pai, Marcílio (Rômulo Braga) é um provedor carinhoso, talvez em excesso. Dira Paes interpreta uma policial que tenta ajudar as crianças em situação de insegurança. Mas sente-se impotente e manietada pelas leis.

Tudo parece convergir para a impotência dos personagens diante de um destino inexorável. Até que uma delas resolve fazer um corte, como se refundasse e redefinisse a relação com agressores e com o mundo em geral. Desse ato surge a polêmica.

A questão retorna: um ato de violência, ou de vingança pode ser refundador? Talvez. Lembrou-se de outro filme, Bacurau, de Kléber Mendonça, em que uma cena foi repetidamente recebida com aplausos pelo público da época. Em Bacurau, um grupo de gringos desloca-se para uma comunidade no sertão e a transforma em campo de caça. Os moradores se defendem. Lutam pela vida. De forma coletiva E o fazem com violência. Sangue contra sangue.

A violência exposta em Manas, com a exploração sexual de uma menina de 13 anos, seria menor ou menos grave? No plano dos fatos, não é. No plano ficcional é diferente? Talvez seja, pois a ficção conta com a reação planejada da plateia. O artista deseja provocar algo. O quê? Que o público saia reconfortado pela catarse, pelo alívio das tensões? Ou que saia intrigado, revoltado e consciente de que viu na tela uma iniquidade que acontece na realidade e deve ser combatida a todo custo?

O tema da vingança remonta, talvez, à origem dos tempos. A literatura grega está cheia de heróis que se vingam. Hamlet é criticado por adiar demais a vingança pelo assassinato do pai. Um dos grandes folhetins de todos os tempos, O Conde de Montecristo (mais de 20 versões para o cinema), é, do princípio ao fim, uma história de vingança. Antar, musicado por Rimsky-Korsakoff, é confrontado com os três grandes prazeres da humanidade - o poder, a vingança e o amor. No fundo, não é a vingança que o destroi, mas o amor.

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Antonio Candido escreveu um ensaio chamado Da Vingança, justamente sobre a obra folhetinesca de Alexandre Dumas, pai. Resumindo: Edmond Dantès é encarcerado injustamente em uma masmorra por 14 anos. Quando foge, arquiteta uma vingança contra os que o enviaram ao cárcere e destruíram sua vida. Candido destaca o caráter individual do ato vingativo: "O Conde de Montecristo é um retrato completo da vingança pessoal; a vingança pessoal é a quintessência do individualismo; o individualismo foi e de certo modo continua querendo ser, eixo da conduta burguesa."

O que muda o ato de vingança? Nada, do ponto de vista estrutural. Mas esta é uma reflexão feita no tempo em que se acreditava em soluções coletivas.

Isso posto, deve-se, mais uma vez, destacar a qualidade do filme de Marianna Brennand e o jeito forte com que nos atinge, independente de cenas catárticas ou não. Tomara provoque mais barulho e discussão, pois seu tema é dos mais urgentes.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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