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Opinião | Gostoso 2024: 'O Deserto de Akin' e 'Tijolo por Tijolo', temas brasileiros em questão

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Atualização:
O Deserto de Akin, de Bernard Lessa, tem como protagonista o médico cubano Akin (Reinier Morales), dedicado aos seus pacientes, em especial os de uma aldeia indígena próxima de Vitória, no Espírito Santo. Foto: Rede Filmes/ Divulgação

Diário crítico (2)

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SÃO MIGUEL DO GOSTOSO - Programa duplo ontem no telão da Praia do Maceió, com os longas-metragens Tijolo por Tijolo e O Deserto de Akin, ambos na mostra competitiva. A sessão terminou de madrugada.

Começo pelo último, por um motivo simples: é a primeira vez que o vejo, então vamos privilegiar as novidades. O Deserto de Akin, de Bernard Lessa, tem como protagonista o médico cubano Akin (Reinier Morales), dedicado aos seus pacientes, em especial os de uma aldeia indígena próxima de Vitória, no Espírito Santo. Vive-se no tempo do programa Mais Médicos, criado durante o governo Dilma e desmontado por Bolsonaro.

Do ponto de vista político, o filme capta esse clima de transição, com a dedicação do médico aos seus pacientes contrastando com a brutalidade que mostra sua cara em brigas de bar e trânsito. É o "ovo da serpente" sendo chocado, antiga referência sobre o fascismo, título aproveitado em um dos menos inspirados filmes de Bergman.

O médico Akin ama seu trabalho e também suas amizades, a professora vivida por Ana Flávia Cavalcanti e o cozinheiro interpretado por Guga Patriota. Formam um trio, inseparável.

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Na trama, vários fios se enlaçam de modo que sejam contemplados os itens obrigatórios da produção brasileira contemporânea - questões raciais, afirmação feminina e LGBT+, relações não-binárias, etc.

O problema é que esse preenchimento de casas obrigatórias nem sempre se articula em narrativas fluidas ou convincentes. O filme ainda apela para alguns simbolismos meio óbvios, como a já citada cobra que se insinua em algumas cenas de forma repetitiva e a areia acumulada nas casas, como a dizer que o deserto está chegando. Está ao nosso lado, quando não dentro de nós.

O filme tem qualidades, mas esse caráter programático, no qual parte da produção brasileira contemporânea se aprisionou, estabelece também os seus limites. Trabalha dentro de certos paradigmas, que não podem ser desafiados. Sobra pouco espaço para a invenção e menos ainda para transgressões, tanto temáticas como de linguagem. Há exceções, como Baby, de Marcelo Caetano, também exibido por aqui, fora de concurso.

O tipo físico do ator que interpreta Akin - com o corpo tatuado e usando dreadlocks - não combina com a imagem dos médicos estrangeiros que aqui atuaram: basta ver o maravilhoso livro de fotos de Araquém Alcântara sobre o Mais Médicos. Algumas dessas fotos, aliás, foram usadas no filme, emprestando-lhe um toque documental interessante. Mas, como não se trata de documentário e sim de ficção, o médico cubano Akin, que se diz nascido em Angola, pôde ser interpretado por um "corpo não-hegemônico", como se diz.

Enfim, explicações a posteriori são sempre possíveis. Resta saber se colam junto a sua excelência, o público. Aqui foi muito aplaudido.

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Vi Tijolo por Tijolo pela segunda vez aqui em Gostoso - antes havia assistido ao doc no festival curitibano Olhar de Cinema, no qual ganhou os prêmios de direção e montagem.

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No documentário, os diretores Victória Álvares e Quentin Delaroche acompanham o cotidiano de Cris Martins e sua família, moradores em Ibura, na periferia do Recife. Cris está grávida do quarto filho e pretende fazer laqueadura. Descobre que, para isso, o parto terá de ser uma cesariana. Ao mesmo tempo, seu marido cuida da ampliação da casa. Ele não é pedreiro de ofício, mas vê vídeos no YouTube com informações sobre a arte da construção.

Há muita coisa que chama a atenção no longa. Em particular, algo que se sabe de cor, mas ganha nova dimensão ao ser mostrado na tela: a dureza da vida do brasileiro pobre, em luta permanente pela sobrevivência e também esperando por um futuro menos difícil. Depois, o nível de solidariedade que mostram em relação aos outros, como acontece numa tragédia de deslizamento de terra causado pela chuva intensa no Recife.

Também mostra a maneira criativa como usam as redes sociais. Albert, o marido, consulta informações sobre como erguer paredes. Ao mesmo tempo, filma a família. Aliás, a família toda se filma em tempo real e sobe os conteúdos em redes sociais. Cris tornou-se uma personalidade no Instagram, com seus vídeos de conselhos sobre a maternidade e outros assuntos. São todos ultra-conectados e fazem de si mesmos um show permanente, em nada diferente do que fazem celebridades e influencers.

O filme não disfarça as dificuldades materiais, porém revela a capacidade de resistência dessas pessoas e seu talento em fazer uma limonada dos vários limões azedos que a vida lhes oferece. Seguem adiante, construindo suas vidas - tijolo por tijolo, como diz o título. E não lhes falta humor, o que dá leveza a temas tão graves.

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A família é quase um protótipo do que hoje se chama de empreendedorismo. Parte da ilusão de que cada um pode ser patrão de si mesmo e progredir por conta própria, com a ajuda de Deus, é claro. É um tema difícil de ser tratado porque nele se cola uma certa despolitização, traduzida nas igrejas pela chamada teologia da prosperidade, com suas saídas individuais substituindo propostas coletivas, hoje em desuso.

Por outro lado, em país tão desigual como o Brasil, como julgar pessoas que, ao invés de se vitimizar, buscam alternativas para si e seus familiares? Diante desse apelo individualista, políticas de apoio e incentivo parecem ficar em segundo plano, quando não desaparecer de vez na percepção das pessoas. O eventual progresso é dádiva de Deus e do esforço próprio. Esse é o nó górdio que governos progressistas não conseguem desatar.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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