Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião | Gramado 2021: Carro Rei e as distopias totalitárias

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Dia 6

PUBLICIDADE

Uma noite bastante surpreendente, em especial com a apresentação de Carro Rei, de Renata Pinheiro, na competição nacional. Entre os estrangeiros, o uruguaio La Teoría de los Vidrios Rotos, comédia com aquele minimalismo típico do país vizinho. Entre os curtas, Onde Vão os Pés e Memória de quem (não) fui, ambos voltados a questões de gênero. Esta noite a mostra competitiva chega ao fim (já????) com a exibição de Jesus Kid, de Aly Muritiba. 

Carro Rei (PE), de Renata Pinheiro, de fato provoca espanto. Com sua estética tecno retrô, em diálogo com a ficção científica e com a narrativa fantástica, expõe-se como uma espécie de objeto não identificado no panorama do cinema brasileiro contemporâneo.  

Para quem não viu, breve sinopse. Uno (Luciano Pedro) tem a faculdade de compreender a linguagem dos automóveis. Seu tio, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) é um mecânico de gênio. Uma lei municipal proíbe que carros com mais de 15 anos de fabricação continuem em circulação, o que põe em perigo a frota de táxis do pai de Uno. Numa trama paralela, um grupo agrícola comunitário desenvolve pesquisas para revitalização do solo. Entre elas, a garota Amora (Clara Pinheiro, filha da diretora), que desenvolve uma relação com Uno. 

Em sua inventividade selvagem, essa revolta dos carros remete a várias referências, como Christine, o Carro Assassino, Fuscão Preto, Crash, Ballard, Metrópolis, Branco Sai, Preto Fica, Eu, Robô, 2001 - uma Odisseia no Espaço, e etc. Caçar citações ou influências é divertimento de críticos e cinéfilos. Dispensável para quem deseja apenas se deixar envolver pela obra de arte, ser sensibilizado por ela ou nela encontrar material para reflexão. 

Publicidade

Nesse sentido, Carro Rei explode em várias direções e produz uma bem-vinda tempestade cerebral em quem assiste. É bem possível ver nele um questionamento da relação homem-máquina e de como nos deixamos seduzir por elas a ponto de nos desumanizarmos. Como diz o personagem Zé Macaco, o primeiro símio que empunhou uma pedra (ou um osso) ganhou uma extensão no braço, que potencializou a sua força (Sim, pode ver aí uma citação dos símios de 2001 à sombra do monolito .

A tecnologia é também poder e a trajetória de Zé Macaco abre-se em duas direções: mentalmente adquire novos poderes tecnológicos; no corpo, involui na escala zoológica. A transformação corporal de Matheus Nachtergaele é impressionante. 

Se alguém quiser enxergar nessa fábula a emergência do fascismo em uma luta antissistema, também não estará errado. Dá-se quando a justa revolta dos carros usados passa a ser guiada por um recém-criado líder de ideias totalitárias. Alguma surpresa? De novo: alguma surpresa que a sensação de ter sido deixado para trás, o velho ressentimento, sirva de mola propulsora para regimes odiosos, liberticidas e mortais, em último termo? Olhe para a Itália fascista e para a Alemanha nazista. Olhe para os regimes da Hungria, Turquia, Brasil. Olhe para Trump. Olhe para nós. 

Carro Rei é essa espécie de espelho deformado que reflete nossa própria imagem como país, com uma semelhança fabular muito perturbadora. 

La teoría de los vidrios Rotos (URU), de Diego Fernandez Pujol.

Publicidade

O perito de seguros Claudio Tapia (Martin Slipak) julga que tirou a sorte grande ao substituir um gerente responsável pela clientela de uma cidade do interior. Lá chegando, vê que se enganou. Encontra hostilidades e problemas. Aliás, um problemão, já que carros estão sendo incendiados durante a noite e os proprietários exigem pronto pagamento das apólices.

O sutil humor uruguaio dá sabor a essa pequena história de mistério. A investigação em si não parece lá muito promissora, mas são os aspectos da província que contam mais na narrativa. Desde o delegado (Cézar Troncoso), que conhece toda a cidade até o latifundiário (Roberto Birindelli), candidato a deputado, e que se julga dono de tudo e de todos. As mulheres não ficam atrás e desempenham papel importante na trama e também na solução do mistério. Achei o trajeto interessante e o desfecho um tanto brusco.   

Curtas

Aonde vão os pés (PR), de Débora Zanatta. Aqui trata-se da história da garota que busca sua iniciação no sexo de maneira pouco convencional. Tentativa bem-sucedida de evitar clichês no tratamento de temas homoafetivos.  

Memória de quem (não) fui (RJ), de Thiago Kistenmacker. Maneira original de enfrentar a questão da identidade de gênero. História de Marina, que depois de morta, é "recuperada" pela família ao seu gênero biológico. 

Publicidade

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.