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Opinião|Gramado 2024: 'O Clube das Mulheres de Negócios', espelho cruel para revelar o machismo

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Diário crítico (2)

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Gramado 2024: O Clube das Mulheres de Negócios

GRAMADO - Primeiro longa-metragem concorrente, O Clube das Mulheres de Negócios, de Anna Muylaert, não encantou particularmente a plateia de Gramado. O público presente ao Palácio dos Festivais aplaudiu, mas com moderação. 

Não é mesmo um filme fácil, reconheceu a própria diretora durante o debate feito no dia seguinte à projeção, como manda o figurino dos festivais de cinema. Comparando com um dos seus trabalhos anteriores, o ótimo Durval Discos, disse que este era um filme "de amor", enquanto o atual é um "filme de raiva". 

Clube das Mulheres expressa exatamente isso - um momento em que a sociedade se move, e talvez para um futuro mais civilizado e equânime, mas com os ânimos exasperados, de punhos cerrados, como costuma acontecer nas disputas por espaço. É um momento bélico, de ajuste de contas e as reconciliações, caso aconteçam, ficam para depois. 

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O Clube das Mulheres de Negócios funciona à base de uma inversão dos clichês de gêneros. As mulheres que se reúnem no tal clube são poderosas, abusivas, autoritárias, algumas com problemas com a justiça, adoram armas de fogo, etc. Os homens ocupam posição subalterna, passiva, dócil, subalterna. São maridos fracos, colocados à parte, enquanto as mulheres debatem negócios - e negociatas. Num clube de luxo, são servidas por rapazes bonitos, de shortinho, troféus sexuais. E assim por diante.

A ideia, pelo menos, nessa fase inicial da obra, é colocar um espelho no qual os homens se vejam refletidos em todo o autoritarismo e desmandos típicos da sociedade machista. Sente-se o grito de revolta por trás das imagens. 

Seria um filme óbvio, caso ficasse apenas nisso. Por sorte, Anna Muylaert é uma cineasta de recursos, que não se contenta com pouco e não se limitaria a propor um retrato caricato de uma sociedade injusta pela via da inversão. Seria muito pouco. Vai além do ponto de partida e evolui para uma obra que se desenvolve em outras direções e atalhos imprevisíveis. Melhora demais do meio para o fim, quando as próprias contradições das "empoderadas" começam a colocá-las em xeque. 

Sem dar spoiler, pode-se dizer que a dimensão da obra se amplia para uma crítica geral do poder e de como a soberba no domínio sobre os outros e sobre a própria natureza pode levar a todos e todas ao caos. 

Também é uma obra de muitas camadas e isso no sentido quase literal do termo. Há o luxo do clube na superfície, mas também existem os porões, os baixios nos quais acontecem coisas inimagináveis na parte de cima. Essa disparidade entre estratos da narrativa funciona em regime de metáfora da própria sociedade brasileira, que, por tradição, se apresenta como cartão postal escondendo uma realidade bem diferente da que opera no porão. 

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Esteticamente, Clube das Mulheres me pareceu uma obra muito sólida, com registro fotográfico preciso da craque Barbara Alvarez e trilha sonora de André Abujamra, que faz também um pequeno papel como um dos maridos dominados pelas poderosas. 

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Algumas cenas de impacto ficam na retina e na lembrança dos espectadores. Em especial uma, de assédio invertido, quando um jovem se vê acossado sexualmente por uma das madames, interpretada por Grace Gianoukas. "É para mostrar aos homens o que nós sentimos nesse tipo de situação", disse a atriz no debate. Aliás, um formidável elenco feminino com, além de Grace, Cristina Pereira, Irene Ravache, Louise Cardoso, Katiuscia Canoro, Polly Marinho, Helena Albergaria, Shirley Cruz, Maria Bopp e Ítala Nandi. 

Tudo funciona no sentido de contemplar as questões de gênero e identitárias como a grande pauta contemporânea, "que está mudando o tecido da sociedade", acredita a diretora. Por outro lado, ao propor uma crítica concreta do poder - seja masculino ou feminino - o filme evita recolher-se ao nicho específico do identitarismo puro e duro. Avança, pelo menos na primeira leitura que faço da obra.   

Esse avanço é sua maior virtude, mas, em todo caso, indica um deslocamento de preocupações da autora. Em Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert é mais política ao indicar os efeitos da mobilidade de classe sobre a estrutura dos privilegiados do país. No caso, a filha da empregada doméstica que "tira a vaga" na faculdade do filho da burguesia. Em O Clube das Mulheres de Negócios, a temática de classes é posta de lado em proveito das questões de gênero, mas, como já disse, com abertura para a discussão do poder, dos seus desvarios e suas ilusões, que podem nos conduzir à breca seja lá quem for que o exerça com irresponsabilidade. 

Como este é o diário da cobertura de um festival, não poderia deixar de mencionar o momento mais emocionante do debate, quando a atriz Cristina Pereira revela de público, e segundo ela pela primeira vez, o abuso sexual que sofreu quando tinha 12 anos. E não havia a quem recorrer, pois toda a sociedade, inclusive a família, abafava esse tipo de crime em nome de uma moral hipócrita. No filme, o garoto assediado pela mulher mais velha, queixa-se à avó, interpretada justamente por Cristina. E ela o aconselha a deixar para lá: "Não há nenhum problema em ser desejado por alguém", diz ao neto, traumatizado. 

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HOMENAGEM

Quem recebeu o Troféu Oscarito nesta edição no festival foi o ator Matheus Nachtergaele, com todos os méritos. Além de ser um ator privilegiado, é culto, engraçado e empático. Diretor de um filme ousado, A Festa da Menina Morta, Matheus é um ator privilegiado - quem o viu no teatro, em O Livro de Jó, sabe do que estou falando. E também é ator de grande comunicação popular, como o seu João Grilo de Auto da Compadecida, texto de Ariano Suassuna, cuja continuação estreia em dezembro deste ano. Com a homenagem mais do que merecida, Matheus ainda brindou a plateia com reflexões sobre a profissão de ator, um métier que sempre flerta com a incerteza e o abismo. E, para encerrar recitou uma poesia de Fernando Pessoa, pedindo ao público que colaborasse com um ruído de fundo para Eros e Psiquê. O poeta - e, no caso, o ator, encontra em si aquilo que buscara durante toda a vida. 

"E, inda tonto do que houvera,

à cabeça, em maresia,

ergue a mão, e encontra hera,

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e vê que ele mesmo era

a Princesa que dormia."

Muito chique

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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