Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Mostra 2024: O sonho americano em pedaços

Foto do author Luiz Zanin Oricchio

 

 

Muita gente literalmente se mata para entrar nos Estados Unidos. O país serve de modelo a outros povos, como acontece, de maneira acrítica, aqui mesmo no Brasil. No entanto, o tal "sonho americano", qual uma ilusão coletiva, parece em crise. Pelo menos é o que se deduz de alguns filmes presentes à Mostra de Cinema. 

PUBLICIDADE

A começar pelo badalado Anora, de Sean Baker, Palma de Ouro em Cannes, ao retratar a vida de uma garota de programa de origem russa, Ani (Mikey Madison), que exerce a profissão em Nova York e vive uma espécie de pretty woman às avessas. Essa anti-Cinderal, conhece um  playboy russo, Ivan (Mark Eydelshteyn), desmiolado filho de um oligarca do pós-comunismo, e engata com ele um namoro que termina em casamento em Las Vegas. 

Mas a história não termina aí, como poderão ver os espectadores desse filme dirigido por um cineasta que adora trabalhar com as margens da sociedade de seu país - vide os anteriores Tangerine e Projeto Flórida. 

O questionamento da ilusão americana prossegue com A Cozinha, do mexicano Alonso Ruizplacios, que transforma os bastidores de um restaurante em Manhattan numa espécie de microcosmo a retratar a pouco estimulante vida de imigrantes hispânicos na "terra das oportunidades".

O filme é coral, isto é, distribuído em uma série de papeis que têm sua função dramática no enredo: há o negro norte-americano que convive com seus companheiros de origens diversas, homens e mulheres vindos de vários países. Mas, se existe um polo narrativo, este é composto pelo casal Pedro (Raúl Briones) e Julia (Rooney Mara). Ele, temperamental  cozinheiro vindo do México, ela, uma loiríssima anglo-saxã de vida problemática, ambos vivendo um tormentoso caso de amor. O sonho se rompe num caso individual, porém que vale como reflexão coletiva sobre uma situação de alta instabilidade. 

Publicidade

Ruizpalacios, diretor de filmes como Güeros e O Museu, retrata com agudeza essas relações de exploração entre patrões e empregados fragilizados por não terem documentação legal. Elege esse polo assimétrico - a relação entre Pedro e Julia - como estopim de todas as contradições que encontram na cozinha do restaurante seu palco privilegiado. 

Outro exemplo é o vigoroso painel de O Brutalista, de Brady Corbet, que, em suas três horas e 37 minutos de duração, traz a saga nada heróica de László Tóth (Adrien Brody), imigrante húngaro que parece ter tirado a sorte grande ao poder usar, em terra americana, seu talento de arquiteto formado pela Bauhaus. Ele chega antes, no imediato pós-guerra, e tenta trazer da Europa para os Estados Unidos, sua esposa Erzsébet (Felicity Jones). Trabalha para um milionário temperamental e racista, Len Van Buren (Guy Pearce), que o contrata para erigir um monumental centro de cultura em homenagem à mãe recém-falecida. 

O filme é grandioso - tanto em seus acertos quanto em seus vacilos - mas, considerações estéticas à parte, é um valioso testemunho de tudo o que exige uma terra de eleição aos seus novos moradores, vindos de países empobrecidos ou destroçados por uma guerra. Ficamos com a fala de uma das personagens nos ouvidos: "Este país (os EUA) nos apodrece por dentro". 

Um quarto exemplo seria o distópico Megalópolis, de Francis Ford Coppola, que fecha a Mostra dia 30, com a presença do diretor, e entra em cartaz nos cinemas no dia seguinte. Pelo que se sabe, Coppola, genial autor da trilogia dos Chefões, e do alucinante Apocalipse Now, compara a decadência do sonho americano com a queda do Império Romano. É um projeto de 40 anos, que ninguém se dispôs a financiar e foi bancado pelo próprio diretor. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.