É curioso como a sinopse de um grande filme pode fazer com que pareça bastante banal. Em O Mal Não Existe, temos uma pequena comunidade, não distante de Tóquio mas suficientemente isolada para manter uma vida provinciana, em que todos se conhecem e vivem em contato com a natureza, numa montanha nevada, em que passeiam cervos e seres humanos.
Logo chegam um homem e uma mulher, empregados de uma incorporadora, com a missão de estabelecer contato com os moradores. A empresa comprou um lote por lá e deseja estabelecer algo que chamam de "glamping" - ou seja, um camping de luxo, feito para gente rica. Esses emissários vêm para dar a boa nova aos moradores. Todos lucram com a chegada do empreendimento, ele gera empregos, valoriza as propriedades, traz progresso, etc. A conversa de sempre.
Até que alguém do público resolve fazer uma pergunta indesejável. Onde vão instalar a fossa séptica, e onde serão despejados os dejetos de toda aquela gente nova que vai chegar? Problema, não é? A propriedade está em cima e quem mora embaixo vai receber o lixo e os inevitáveis subprodutos da digestão humana, para dizer assim. Lá embaixo também corre um rio, até então de águas cristalinas que, por certo, será contaminado pela chegada dos visitantes. Claro, tudo poderia se fazer de outra forma, com os devidos cuidados, mas isso elevaria os custos, etc, etc e tal.
Enfim, o tema de O Mal Não Existe, de Ryusuke Hamaguchi, é o mesmo de tantos outros filmes - o embate, em aparência insolúvel, entre a exploração capitalista e o respeito ao meio ambiente. Entre os dois algo deverá ser sacrificado - e por certo não será o lucro dos investidores. É nesse campo minado que tudo se desenvolve.
Mas, nesse ponto, é bom dizer que esse tema se desenvolve em linguagem cinematográfica bastante original. O que equivale a dizer que ele pode ser olhado de outra maneira, sem os clichês usuais.
O filme inicia com a câmera dirigida à copa de árvores, em uma paisagem nevada. Um longo travelling acompanha essa visão da natureza de um ângulo pouco comum, enquanto o espectador é imerso numa trilha sonora um tanto hipnótica, assinada por Eiko Ishibashi. Depois de alguns momentos, a câmera assume posição horizontal e os personagens vão surgindo, depois de esquadrinhado o ambiente. Dois, em primeiro lugar. Um homem, Takumi (Hitoshi Omika) e uma garotinha. Pai e filha.
Takumi é o faz-tudo da aldeia. Conserta objetos, racha lenha, é circunspecto, entende de tudo e fala pouco. Homem do campo padrão, desconfia dos estranhos. Depois da reunião fatídica dos representantes da empresa com os moradores, os patrões têm a ideia de convidá-lo para ser uma espécie de representante da firma junto aos moradores. Ele não aceita. Mas então o chamam para ser o zelador do futuro camping; aliás, glamping.
Nesse trajeto, Hamaguchi não hesita em usar o humor para desvendar os pensamentos de fundo de uma situação complexa e contraditória. A reunião entre os moradores e o casal representante da empresa é o campo no qual interesses um tanto escusos de parte a parte são expostos, muitas vezes de forma jocosa. Os funcionários da empresa sabem que estão trazendo a peste àquele local. Os moradores também sabem; mas muitos, entre eles, esperam lucrar alguma coisa com isso. Por isso, não dão uma negativa enfática. Eles querem e não querem. E, nessa ambivalência, talvez algum acordo seja possível. O velho líder da comunidade é quem comunica essa mensagem de forma totalmente ambígua.
Além do mais, há alguns elementos que ajudam a criar um clima de tensão naquele ambiente bucólico. Os cervos passeiam livremente por suas trilhas. Não atacam ninguém, mas podem se tornar perigosos quando feridos. Ouvem-se ruídos ao longe - alguém está caçando. São sinais que produzem a impressão de que algo ruim pode acontecer. O título nos garante que o mal não existe. Mesmo assim...é bom não facilitar.
O contato com os moradores e com a vida naquele lugar - tão diferente da existência na gigantesca Tóquio, quase ao lado - mexe com a cabeça dos dois funcionários da empresa. O homem e a mulher não parecem tão convictos como no início daquilo que estão fazendo. Talvez surjam dúvidas, contradições internas, desejos apagados e que se acendem de imprevisto.
O contato com algo muito diferente de nós às vezes produz essa sensação de estranhamento. Que, se sabe, pode ser assustadora, mas também muito criativa. Freud escreveu sobre isso em seu ensaio Das Unheimliche - que às vezes se traduz por "o estranho familiar".
Essa ambiguidade se adensa e implode a narrativa nas sequências de desfecho. Final impactante, que produz no espectador (ao menos, neste espectador) um sentimento de epifania. Efeito de algo que não se define em termos lógicos, que "não faz sentido" de imediato, que não se enquadra em qualquer esquema habitual e nos deixa sem fôlego, impressionados e, talvez, iluminados como acontece quando temos à noite um sonho particularmente perturbador.
Não se esquece facilmente este filme, cujo título, falsamente ingênuo, deve ser entendido como uma provocação adicional.
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