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Opinião | 'O Turista Aprendiz', epifania amazônica de Mário de Andrade

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

 

Em 1927, Mário de Andrade havia projetado uma viagem ao Nordeste, mas pensa em adiá-la e empregar o dinheiro na publicação de um livro de poesias, O Clã do Jabuti. De súbito, vem o convite que bota os planos do modernista de cabeça para baixo: uma viagem à Amazônia, patrocinada pela grã-fina paulista Olívia Penteado, uma baronesa do café. Como recusar? Depois de certa hesitação, lá vai Mário, em companhia de Olívia, sua secretária e duas mocinhas, desbravar a Amazônia, viagem nada trivial naquele tempo. 

 

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Da aventura, nasceu um livro chamado por Mário de O Turista Aprendiz, um dos mais originais relatos de viagem da nossa literatura. Esta é a obra que o cineasta Murilo Salles coloca na tela, e de forma também pouco convencional - filma os milhares de quilômetros de percurso do poeta e suas companheiras pela imensidão amazônica sem jamais sair do estúdio onde realiza as filmagens.

É possível usar esse procedimento sem passar a impressão de artificialismo? Veja o filme e tire as dúvidas. O cinema tem recursos para driblar a exigência estrita do realismo e conduzir o espectador por uma experiência plena, tais como as proporcionadas por Federico Fellini, Alain Resnais e Ruy Guerra, mestres do cinema de estúdio. 

Murilo filma a sua Amazônia num galpão com fundo verde sobre o qual são depois colocadas as imagens que simulam o meio ambiente. Usa uma série de outras artimanhas para encenar a viagem, tais como projeções, sons, material de arquivo, etc. O espectador não precisa saber de nada disso para curtir o filme. Talvez seja até melhor que não saiba.  

Então é embarcar nessa aventura em companhia de Mário (Rodrigo Mercadante). É um périplo que começa a bordo do navio D. Pedro I, que parte do Rio e vai costeando o País rumo ao Norte, passando pelas capitais do Nordeste, depois por Belém, até Manaus, onde os viajantes trocam de embarcação e sobem o rio até entrarem em Iquitos, no Peru. 

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O tom do filme é engraçado, satírico às vezes, profundo sem jamais ser chato. Como sabe quem leu a biografia do modernista, Mário havia embarcado a contragosto. Haviam-lhe prometido a companhia de vários amigos intelectuais, como Paulo Prado e outros. Mas foram todos desistindo, um após o outro. Restaram Dona Olívia, sua secretária Madalena, a sobrinha de Olívia, Margarida Guedes Nogueira, de 19 anos, e Dulce do Amaral Pinto, filha da pintora Tarsila do Amaral, com seus 20 anos de idade. 

Ao saber das ausências, Mário emburrou no cais do Rio, mas logo se conformou e resolveu que era melhor aproveitar a oportunidade. Viajou, conheceu lugares e gentes, ouviu música, tomou seus pilequinhos, divertiu-se com as moças e suportou os cerimoniais que Dona Olívia organizava de porto em porto. Tomou notas de tudo, coletou souvenirs locais, e trouxe inúmeras fotos feitas com sua câmera Kodak, ele que era hábil fotógrafo amador. Com a experiência rascunhada no diário e depois transcrita, escreveu essa delícia que é Turista Aprendiz. Trouxe também material para enriquecer o romance que estava em curso e viria a ser a sua obra-prima - Macunaíma. 

Em seu filme, Murilo Salles capta exatamente essa dimensão especial da viagem, que é a da descoberta e do amadurecimento pessoal. Apesar de ter passado muitos perrengues em sua aventura na floresta, picado de insetos e com a saúde financeira abalada na volta, o citadino Mario de Andrade regressa a São Paulo feliz e transformado.  A aventura sela o encontro do intelectual urbano com algo que se poderia chamar de "Brasil profundo". 

Os jovens da Semana de Arte Moderna tomaram contato com o Brasil de verdade através de suas viagens - ao Nordeste, à Amazônia, às cidades mineiras do barroco - Ouro Preto, em particular. Escreve o biógrafo Jason Tércio (Em Busca da Alma Brasileira - Biografia de Mário de Andrade, Estação Brasil, 2019): "A expedição às entranhas do Brasil, absorvidas por todos os sentidos e poros, foi um rito de passagem para Mário, uma expansão de sua consciência espiritual, humana e intelectual. Agora ingressava num estágio superior de conhecimento do país, do povo e de si próprio" (página 272). 

Murilo Salles, cineasta experiente e dono de domínio completo do seu ofício (começou como fotógrafo), não apenas transcreve um texto literário, mas o recria, dando asas à imaginação, no visual como no conteúdo. Reinventa a obra. 

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Além de ótimo filme, Turista Aprendiz sinaliza algo mais importante, a meu ver, e que vai além dele. Talvez represente a retomada de uma linha interrompida do cinema brasileiro, a de pensar grandes questões e temas. Depois de se dedicar às complexas questões nacionais - a identidade e natureza do ser brasileiro, as imensas disparidades sociais, os sólidos limites estruturais da nação, etc, o cinema brasileiro parece ter se cansado do esforço e, com as exceções de praxe, resolve limitar-se a debates mais particulares, intimistas ou  reivindicações de grupos particulares. Tudo muito importante, mas sem visão de conjunto, sem ambição de compreender o todo, sem universalidade de propósitos e perspectivas. 

Há outro aspecto em Turista Aprendiz, que é o tratamento maduro do personagem. Nesse filme de retomada, o personagem Mário de Andrade é retratado por Murilo Salles sem qualquer reverência rançosa. A percepção admirável das coisas que o escritor vê e registra é contraposta ao ridículo de um estilo dândi puxado ao europeu, que era típico das elites brasileiras dos anos 1920 e 1930. No entanto, é o próprio contato com o Brasil real que "civiliza" Mário e seus amigos. 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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