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Opinião|Olhar 2024: 'Pepe', o hipopótamo que lê Deleuze e a busca da ancestralidade em 'Praia Formosa'

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Diário crítico (6)

CURITIBA - No auge da fortuna, o mega narcotraficante colombiano Pablo Escobar mandou trazer hipopótamos da África para turbinar seu zoológico particular. Um dos animais escapou e foi se instalar no Magdalena, rio celebrado nas memórias de Gabriel García Márquez. O diretor dominicano Nelson De Los Santos Arias deu um colorido de realismo fantástico a essa história e, com isso, ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Berlim, um dos mais importantes do mundo.

 

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Em Curitiba, Árias ironizou o troféu dizendo que havia sido premiado por tudo que ele não era - um diretor de cinema. É mais um chiste que um sincericídio. O filme tem direção, embora ela seja meio destrambelhada. Respondendo a perguntas, Árias intelectualizou, falando em "rizoma", já que é moda citar o conceito de Deleuze & Guattari, embora pouca gente tenha lido a dupla.

Pepe é o nome do rinoceronte fujão, que passa a aterrorizar os habitantes de um vilarejo ribeirinho. No filme de Árias, os rinocerontes falam, pensam e se expressam em frases de profundidade filosófica. Pelo medo que o espécime causa, temos o retrato de uma pequena localidade caribenha, com suas brigas de casais, bravatas dos homens e concursos de misses juvenis.

O diretor, que não se assume como tal, apelou também para o termo "decolonial" para marcar a trajetória do animal filosófico, caçado na África e que veio a sucumbir na América. Deve haver aí um projeto político, mas não fica bem claro. Não lhe falta, porém, senso de humor. Está na competitiva internacional.

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Pela competitiva nacional, Praia Formosa, de Julia de Simone, trabalha com uma espécie de mistura de tempos. Muanza (Lucília Raimundo), nascida no Congo e escravizada, acaba chegando ao Brasil contemporâneo, mais especificamente à região do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.

É uma história que trata de forma alegórica tanto a iniquidade da escravidão quanto a resistência daqueles e, sobretudo, daquelas que a ela foram submetidas. Num trabalho de arqueologia cultural, Praia Formosa remonta às raízes e busca pela ancestralidade dos que tiveram sua história apagada e agora a reconstroem. Tem qualidades e ajusta-se às pautas contemporâneas de maneira original, embora pareça um tanto frio em seu conjunto.

Nem apenas de mostras competitivas vive o Olhar de Cinema. Mário, de Billy Woodberry, é uma dessas atrações especiais. Traça o retrato de Mário Pinto de Andrade (1928-1990), importante intelectual, poeta e ativista angolano. Líder do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), teve papel importante nas lutas anticolonialistas.

Mário viveu, pensou e lutou na voragem dos anos 1960 e 1970 quando havia enfrentamento internacional dos países do chamado Terceiro Mundo contra as potências colonialistas. Passam pelo documentário nomes como Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Gillo Pontecorvo, Ousmane Sembene, Chris Marker, Sarah Maldoror, Patrice Lumumba, Nelson Mandela, Che Guevara, Fidel Castro e outros. Bom material de arquivo, narrativa baseada em entrevistas concedidas pelo personagem em diversas ocasiões, traz de volta esse tempo insurgente, em que se lutava por um mundo melhor e a vitória não parecia uma hipótese nem risível nem improvável.

O traçado político de organizações que se aliam e se dividem ao sabor dos ventos da História, a profusão de nomes e personagens que entram e saem da narrativa, as convicções e contradições internas e externas, tornam sua compreensão às vezes difícil. A política, em si, é difícil. Filme para ver, rever e trever. Apaixonante.

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O festival comporta também uma série histórica, dedicada este ano ao chinês (de Taiwan) Hou Hsiao-Hsien. Prócer do chamado "novo cinema taiwanês, foi o que teve carreira mais reconhecida no Ocidente. Tempo de Viver e Tempo de Morrer é o segundo de uma trilogia de formação do diretor, abordando parte de sua infância e juventude. A narração em off é a voz do próprio cineasta, hoje aposentado e sofrendo do Mal de Alzheimer.

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Tempo de Viver...fala da ida da família da China continental para Taiwan, onde o pai contava ficar dois, três anos no máximo. Tanto assim que comprava móveis baratos, de bambu, que poderiam ser descartados sem pena quando a família voltasse. Isso jamais ocorreu.

É uma descrição cheia de frescor da infância despreocupada, logo tisnada pela morte prematura do pai. O protagonista também terá de enfrentar a perda precoce da mãe, restando apenas a velha avó como esteio familiar. Brigas juvenis, o primeiro amor, o desejo de seguir a carreira militar, antes do feliz desvio que o levaria ao cinema - tudo vem narrado com intensidade e despojamento.

A pureza das imagens, a simplicidade narrativa, a sinceridade impressa em cada fotograma, comovem. O filme faz bem aos olhos - e ao coração.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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