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Opinião | Panorama 2025: uma Salvador radioativa e alucinada em 'Jamex'

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

SALVADOR - Em Jamex e o Fim do Medo, Salvador torna-se Salvadolores, o bairro do Rio Vermelho converte-se em Rio Roxo, e assim por diante. É numa cidade pós-apocalítica, caótica e com zonas proibidas por causa da radiação, que a ação montada pelo diretor (e roteirista) Ramon Mota Coutinho se desenvolve. Muita ação, aliás, para pouca linha narrativa: o pintor Jamex (interpretado pelo artista plástico de mesmo codinome) precisa cruzar a cidade para entregar uma obra a um misterioso comprador. Encontra mil dificuldades, e é isso.

 

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O road movie maluco traz muitas surpresas e uma energia, cômica e crítica que parece derivar do melhor cinema baiano - aquele da tradição de André Luiz Oliveira (de Meteorango Kid, Herói Intergalático) e Edgard Navarro (de O Super-Outro). São filmes antigos, mas cuja estética parece impregnar até hoje a produção local. Ou a parte dela mais jovem, inconformista e disposta à invenção.

Claro, a inspiração geral é num cinema barato, feito com garra jovem, inventivo e sensorial. Não se preocupa muito que as coisas façam sentido, ou que o roteiro seja redondinho e não tenha buracos, etc. É mais dionisíaco que apolíneo. Vai na base da impressão e da expressão. Com talento cinematográfico (câmera e sons), a coisa, contra toda a expectativa, funciona.

Durante o debate falou-se muito em David Lynch, o grande mestre do cinema onírico. Tem a ver. Lynch trabalhava muito com o inconsciente e se lixava para quem buscava sentidos fixos em seus filmes. Lembro de uma entrevista muito engraçada em Veneza, anos atrás, quando ele concorria com Império dos Sonhos. Um jornalista tentava identificar um por um o significado dos signos que vira na tela, para respostas sempre as  mesmas de Lynch: "No, no, no!". Para que fazer sentido? Deixe-se levar.

Foi apenas durante o debate, quando uma pergunta de um espectador mais vivido exumou os nomes de Oliveira e Navarro, que esses dois cineastas fundamentais entraram na pauta da discussão. Fiquei feliz que tenham sido lembrados. Durante os melhores momentos de Jamex eu sentia a presença dos dois. Oliveira foi, há muitos anos, viver em Brasília. Enveredou por um caminho mais sereno e ganhou, em aparência, uma tranquilidade espiritual rara. Navarro, de quem não tenho notícias há muito tempo, nunca abandonou a veia radical de sua obra. É a própria alma de uma Bahia transfigurada, uma Bahia célere e profunda. Tenho a impressão de que ele gostaria de Jamex.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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