Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião | 'Retrato de um certo Oriente', a polifonia das diferenças culturais

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
 

 

Estreia hoje Retrato de um Certo Oriente, versão cinematográfica de Marcelo Gomes para o romance (quase) homônimo de Milton Hatoum.

PUBLICIDADE

 Hatoum e Gomes formam uma parceria afinada. A saga de irmãos libaneses que vêm ao Brasil em busca de uma vida melhor combina tema da imigração, caro ao manauara Hatoum, e da alteridade, motivo favorito do pernambucano Marcelo Gomes, que estreou no longa com o já antológico Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), celebrando o encontro entre um vendedor alemão de produtos farmacêuticos e um rapaz nordestino. 

Há diferenças profundas de formato entre o livro e o filme. Elas já se mostram no título. O romance chama-se Relato de um Certo Oriente; o filme troca "relato" por "retrato", assinalando que se trata de uma interpretação audiovisual de uma obra construída exclusivamente por palavras. Outro aspecto é que a obra literária usa de idas e vindas constantes no tempo. Já o filme é mais linear, pelo menos nesse aspecto temporal. 

Vemos, nas cenas iniciais, Emir tirar sua irmã Emilie do convento onde estava encerrada. Quer convencê-la a deixar o Líbano e tentar a sorte em outro lugar. Que lugar? O Brasil, terra da qual jamais ouviram falar, mas que, parece, oferece oportunidades de trabalho aos imigrantes. 

O filme - todo ele em preto e branco - envereda por uma longa travessia marítima. No navio, Emilie conhece um rapaz chamado Omar. Para desgosto do irmão, Emir, que vê no rapaz muçulmano um rival e um intruso. A rixa se estende até o Brasil, em plena Amazônia, onde Emilie decide se casar com Omar, contrariando a vontade do irmão. 

Publicidade

Retrato de um Certo Oriente é, por certo, um drama familiar. Mas muitas outras coisas mais. Fala do convívio, às vezes problemático, às vezes harmonioso, entre diferentes. Sobretudo entre praticantes de religiões distintas. Desde o Iluminismo, a humanidade alimentou a ilusão de que rixas religiosas seriam coisas do passado. Hoje, passados dois séculos e meio da Revolução Francesa, guerras religiosas continuam em alta e produzindo catástrofes humanitárias. 

"A questão da alteridade sempre me tocou, desde o primeiro filme", disse Marcelo Gomes em entrevista no dia seguinte à projeção, quando o filme estreou no festival curitibano Olhar de Cinema. "A questão das diferenças religiosas surgem como insuperáveis, mas acabam se harmonizando quando essas tradições, vindas de terras longínquas, se encontram com a mais aberta cultura religiosa dos povos amazônicos". A personagem que faz essa ponte é a atriz Rosa Peixoto, de etnia tucano. Ela já participou de outro filme de sucesso, A Febre, de Maya Da-Rin. A sequência, muito bonita, é de uma cerimônia de cura dos tucanos aplicada a um dos personagens libaneses, ferido. 

Também em Curitiba, Milton Hatoum disse que deu liberdade total para a transformação do seu romance em filme e que o talento de Gomes o fez captar, senão a literalidade, o espírito do livro. Aquele núcleo de obra que move o artista. Na origem, em palavras, depois, sobretudo em imagens. 

E o aspecto visual de Retrato de um Certo Oriente é especialmente bem cuidado. Com fotografia de Pierre de Kerchove e montagem de Karen Harley, transita num preto e branco, recheado de citações cinéfilas, com ao clássico de Sergei Eisenstein, Encouraçado Potemkin, por exemplo. O arranjo e duração das cenas dão ao filme uma dinâmica toda particular e envolvente. 

Outro aspecto é a presença do elenco árabe. Os três personagens principais falam entre si, ora em árabe, ora em francês, idioma corrente no Líbano. Fala-se também em italiano, naturalmente em português, e em nheengatu, língua desenvolvida a partir do tupinambá e praticada em todo o vale amazônico. Mais polifônico, impossível. 

Publicidade

Retrato de um Certo Oriente é um filme estupendo, tanto na sua feitura como nas questões contemporâneas que levanta, em especial a da convivência entre culturas diferentes. É, desde já, um dos grandes filmes brasileiros de 2024.

'Retrato de um certo Oriente': a polifonia das diferenças culturais

Estreia hoje Retrato de um Certo Oriente, versão cinematográfica de Marcelo Gomes para o romance (quase) homônimo de Milton Hatoum.

 Hatoum e Gomes formam uma parceria afinada. A saga de irmãos libaneses que vêm ao Brasil em busca de uma vida melhor combina temas da imigração, caro ao manauara Hatoum, e da alteridade, motivo favorito do pernambucano Marcelo Gomes, que estreou no longa com o já antológico Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), celebrando o encontro entre um vendedor alemão de produtos farmacêuticos e um rapaz nordestino.

Há diferenças profundas de formato entre o livro e o filme, que já se mostram no título. O romance chama-se Relato de um Certo Oriente; o filme troca "relato" por "retrato", assinalando que se trata de uma interpretação audiovisual de uma obra construída exclusivamente por palavras. Outro aspecto é que a obra literária usa de idas e vindas constantes no tempo, enquanto o filme é mais linear, pelo menos nesse aspecto temporal.

Publicidade

Vemos, nas cenas iniciais, Emir tirar sua irmã Emilie do convento onde estava encerrada. Ele quer convencê-la a deixar o Líbano e tentar a sorte em outro lugar. Que lugar? O Brasil, terra da qual jamais ouviram falar, mas que, parece, oferece oportunidades de trabalho aos imigrantes.

O filme - todo ele em preto e branco - envereda por uma longa travessia marítima. No navio, Emilie conhece um rapaz chamado Omar, para desgosto do irmão Emir, que vê no rapaz muçulmano um rival e um intruso. A rixa se estende até o Brasil, em plena Amazônia, onde Emilie decide se casar com Omar, contrariando a vontade do irmão.

Retrato de um Certo Oriente é, por certo, um drama familiar, mas também fala de muitas outras coisas. Aborda o convívio, às vezes problemático, às vezes harmonioso, entre diferentes, sobretudo entre praticantes de religiões distintas. Desde o Iluminismo, a humanidade alimentou a ilusão de que rixas religiosas seriam coisas do passado. Hoje, passados dois séculos e meio da Revolução Francesa, guerras religiosas continuam em alta, produzindo catástrofes humanitárias.

"A questão da alteridade sempre me tocou, desde o primeiro filme", disse Marcelo Gomes em entrevista no dia seguinte à projeção, quando o filme estreou no festival curitibano Olhar de Cinema. "As diferenças religiosas surgem como insuperáveis, mas acabam se harmonizando quando essas tradições, vindas de terras longínquas, se encontram com a mais aberta cultura religiosa dos povos amazônicos". A personagem que faz essa ponte é a atriz Rosa Peixoto, de etnia tucano. Ela já participou de outro filme de alto nível, A Febre, de Maya Da-Rin. A sequência, muito bonita, mostra uma cerimônia de cura dos tucanos aplicada a um dos personagens libaneses, ferido.

Em entrevista, Milton Hatoum disse que deu total liberdade para a transformação do seu romance em filme e que o talento de Gomes fez captar, senão a literalidade, o espírito do livro -- aquele núcleo de obra que move o artista, na origem em palavras e, depois, sobretudo em imagens.

Publicidade

O aspecto visual de Retrato de um Certo Oriente é especialmente bem cuidado. Com fotografia de Pierre de Kerchove e montagem de Karen Harley, transita em preto e branco, recheado de citações cinéfilas, como ao clássico de Sergei Eisenstein, Encouraçado Potemkin. O arranjo e a duração das cenas dão ao filme uma dinâmica toda particular e envolvente.

Outro aspecto é a presença do elenco árabe. Os três personagens principais falam entre si, ora em árabe, ora em francês, idioma corrente no Líbano. Fala-se também em italiano, naturalmente em português, e em nheengatu, língua desenvolvida a partir do tupinambá e praticada em todo o vale amazônico. Mais polifônico, impossível.

Retrato de um Certo Oriente é um filme estupendo, tanto na sua feitura quanto nas questões contemporâneas que levanta, em especial a da problemática porém fundamental convivência entre culturas diferentes. É, desde já, um dos grandes filmes brasileiros de 2024.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.