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29 de jan. de 2025
Diário crítico (4)
TIRADENTES /MG - A primeira grande polêmica de Tiradentes surgiu com o longa A Primavera, de Daniel Aragão e Sérgio Bivar, concorrente na principal mostra do certame, a Olhos Livres. Houve discussão e bate-boca durante o debate, com a maior parte do público questionando o diretor, ou melhor um dos diretores, Daniel Aragão.
O filme em si é polêmico? Mais ou menos. Talvez possa ser questionado de forma pontual. Mas não era bem a obra que estava na berlinda. Pegou mesmo foi o passado de Aragão, diretor de fotografia do documentário Jardim das Aflições (2017), uma louvação do "filósofo" de extrema-direita e astrólogo Olavo de Carvalho (1947-2022), guru do bolsonarismo. Havia essa acusação frontal e durante o debate houve tentativas mais sutis de especular se o fotógrafo de Jardim das Aflições de alguma maneira estaria presente na mise-en-scène de A Primavera. Para isso, seria preciso fazer uma análise fílmica comparativa, trabalho que exige algum tempo e serenidade.
Na época do lançamento de Jardim das Aflições, Aragão meteu-se em conflito com os cineastas do Recife e tornou-se persona non grata em sua própria terra. Foi trabalhar fora do Brasil e agora voltou com esse filme que pode ter seus pontos problemáticos mas também qualidades evidentes.
Desvairadamente romântico, A Primavera põe em cena o caso de amor entre um poeta das ruas e uma jovem prostituta. Também retrata a cena do Slam pernambucano e situa sua ação no Recife Antigo, bairro de uma cidade encantadora porém cheia de contrastes, com suas contradições sociais agravadas pela especulação imobiliária predatória e um processo de gentrificação que apenas agrava a situação do povo pobre.
O filme tem ótimo ritmo, muita poesia, música e uma movimentação de câmera que o deixa bastante interessante. A câmera nervosa, febril, com lente grande angular, penetra nos recantos do centro velho com pulsão e volúpia. Alguns dos personagens são ótimos, revelando intérpretes poderosos como Luiz Aquino, Marlon Silva e Eduarda Rocha. Pode ser atacado pela maneira de registrar pessoas em situação de rua. Também deixa dúvidas pela exploração do corpo feminino que hoje pode ser considerada invasiva. Assim disseram em off algumas espectadoras, mas o tema não surgiu no debate, talvez por falta de tempo.
Nos ataques a Aragão, tornou-se recorrente a questão de se é possível ou não separar o artista da obra por ele produzida. Chegou-se à conclusão (provisória) de que não se trata de uma questão simples e é preciso discuti-la mais a fundo. Ainda bem. Enquanto não se resolve o problema, podemos continuar a ler Céline e Pound, ver quadros de Caravaggio e assistir a filmes de Woody Allen, Polanski e Bertolucci.