Em Verissimo, Angelo Defanti assume uma tarefa inglória - retratar um personagem genial, porém famoso por seu laconismo. Muito econômico com as palavras, Luis Fernando Verissimo pouco rende em entrevistas. Assim, per forza, o caminho adotado será o de um doc observacional.
O período abordado também é limitado. Acompanha o cotidiano do escritor, em sua casa em Porto Alegre, cercado pelo carinho da família, nos 15 dias anteriores ao seu 80º aniversário. O vemos também em outras poucas circunstâncias, como num (raro) debate público.
Em todo caso, descontada essa dificuldade, Defanti nos oferece momentos de convívio com este que é um dos maiores escritores do nosso tempo, um espírito vivo e crítico, sempre do bom lado da História (com agá maiusculo), além de excelente contador de histórias (com agá minúsculo) - pelo menos por escrito.
Curiosamente, em público, Verissimo solta-se mais, como se vê em algumas de suas participações em debates. A presença do público parece estimulá-lo. Ainda que em tom baixo, consegue ser mordaz, certeiro e sempre inteligente.
Apesar das limitações impostas pelo personagem, para minha surpresa o doc tem recebido boa acolhida na imprensa. Será o filme ou o personagem? Bem, sempre existe essa dúvida quando se trata de um documentário. Ou do cinema, ou das artes, em geral. Quem não tem seus guilty pleasures apenas por simpatia com o tema, ou com o diretor, ou com determinada atriz ou ator?
Atire a primeira pedra quem se guia apenas por motivos estritamente estéticos e analisa a linguagem da obra sem qualquer referência a conteúdo ou a ligações externas ao material fílmico propriamente dito. Os ícones da politique des auteurs preconizam de modo ortodoxo a abordagem puramente formal. No entanto, ao ler seus textos, quer dizer, sua prática, não encontramos tanto radicalismo crítico. Basta ler Truffaut, por exemplo, o mais fundamentalista de todos. Falam da forma, mas também do enredo, discutem-no e introduzem elementos subjetivos na avaliação da obra. Exatamente como outros críticos. Somos humanos.
Enfim, para voltar a Verissimo: engajar-se num projeto protagonizado por um monstro sagrado, quando este se mostra avaro com as palavras, deve ser visto como um desafio e tanto.
João Moreira Salles enfrentou problema semelhante com o documentário sobre Nelson Freire. Existem diferenças. Um é escritor (embora toque saxofone, como amador); o outro é músico. Como Freire, à semelhança de Verissimo, era lacônico e de uma timidez proverbial, a saída foi estruturar o filme num roteiro muito bem articulado.
Em Nelson Freire são 31 peças aparentemente autônomas, que constroem um retrato fragmentado do pianista. O número não vem ao acaso. As famosas Variações Goldberg, de Bach, consistem em uma ária e 30 variações.
O filme segue esse modelo. Estrutura em mosaico, que funciona perfeitamente em sua fragmentação apenas aparente, formando unidade na leitura do espectador. São partes quase autônomas, embora interligadas, de tal forma que, no DVD, existe a opção de vê-las de maneira aleatória. Funciona muito bem.
Além disso - o que é fundamental - Nelson dispunha da grande e universal linguagem para se expressar, que é a música.
Sem esse recurso, Verissimo fica mais preso ao entorno do personagem. Pode parecer que perde o foco no retratado, como se ele estivesse em segundo plano em seu próprio filme. Fazendo da necessidade uma linguagem, traça o perfil rarefeito de alguém que jamais precisou mostrar-se para se impor. Pelo contrário. Quanto mais discreto era, mais Verissimo se impunha no cenário cultural e jornalístico do país. Em tempo de exibicionismo despudorado, a discrição pode ser mais que uma virtude. Uma espécie de força, pode-se dizer.
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