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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião | Estado e Violência

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Por Marcelo Rubens Paiva

Sexta-feira, Avenida Paulista. Ao sair do metrô para a manifestação de mulheres contra o PL5069 do deputado Eduardo Cunha, que modifica a lei de atendimento às vítimas de violência sexual e do fornecimento de métodos abortivos, me deparei com três viaturas da PM sobre a calçada. Um tenente carregava uma submetralhadora Famae Taurus MT 40, arma de 1.200 tiros por minuto, de polímero e compacta, calibre 40, que com seu sistema Blowback tem mais precisão e alcance, porque o cano é mais longo, e mais “poder de parada” (paralisa antes de o alvo ter reação). Elogiei a arma pendurada numa alça, perguntei se era necessária. O oficial me ignorou.

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Em torno de oito mil mulheres, crianças, bebês (a escolinha do meu filho foi em peso, inclusive sua jovem pediatra), maridos e amigos marcharam pela avenida. Nada de carro de som. A maioria pendurava cartazes feitos à mão com dizeres “Meu Útero É Laico”. Em quem aquela metralhadora seria descarregada? Em menos de sete minutos, o tenente poderia matar todos com sua arma. O despreparo das PMs é exibido diariamente em redes sociais, registrado por celulares. Causa indignação. O da PM paulista é uma aberração: a vemos desocupando escolas, armada até os dentes, sem qualquer piedade, arrastando professoras ou dando cacetadas em abdomes de meninos e meninas, covardia sem sentido em que se nota o olhar vidrado de um agente de Estado sem noção dos seus atos. Até o ouvidor da polícia, Julio Cesar Neves, reclama: “A PM não pode e não deve interceder em assuntos da pasta da Secretaria da Educação e deve ater-se somente no que diz respeito à Segurança Pública”.

A polícia brasileira não tem treinamento responsável (comando), não sabe quem defender, não conhece seu papel na democracia: o de intermediar conflitos diários. A falha está na estrutura. Está no núcleo, na sua fundação. As polícias brasileiras parecem alimentar mais os conflitos para que foram chamadas. Atrapalham mais do que ajudam. E isso não é de hoje. Na tarde do dia 30 de abril de 1981, garçons do Cabana da Serra, restaurante na estrada de Jacarepaguá, suspeitaram de dois clientes armados, que consultavam mapas. Anotaram a placa do carro deles, um Puma, e chamaram a polícia. Os estranhos se identificaram como agentes federais. No dia seguinte, estavam na capa de todos os jornais brasileiros.

O Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado, com o sargento Guilherme Rosário ao lado, chegara ao estacionamento do Riocentro às 20h58. Ele pegou na cancela o bilhete e entrou. Às 21h07, João Ferreira Ramos estacionou seu Fusca ao lado do Puma. Desceu, cumprimentou os dois ocupantes. Não responderam. Estava atrasado para o showmício pelas eleições diretas organizado na véspera do Dia do Trabalho. 

Às 21h15, capitão Machado engatou a ré e começou a sair da vaga. No pavilhão, Elba Ramalho cantava. Uma bomba explodiu no colo do passageiro, o sargento. Muita gente cercou o carro abismada com a cena. Fotógrafos de vários jornais registraram o interior. O corpo do sargento dividiu-se em dois. O motorista, o capitão, parecia vivo. Ninguém ousava se aproximar. Só 25 minutos depois, Andréa Neves da Cunha, neta de Tancredo Neves, rompeu o cordão, colocou o capitão moribundo no seu carro e o levou para o hospital Lourenço Jorge. Sobreviveu graças à iniciativa da neta de um líder das Diretas-Já.

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Depois que militares anunciaram a abertura “lenta e gradual” e levantaram a censura em jornais e revistas, de 1980 até este 30 de abril de 1981, tivemos mais de 70 atentados à bomba no Brasil. Só no dia 27 de agosto de 1980, três bombas explodiram no Rio: uma na sede da OAB, que matou a secretária Lyda Monteiro da Silva, outra na Câmara Municipal, em que seis pessoas foram atingidas, e, a terceira, no jornal Tribuna da Luta Operária. 

Era uma atrás da outra. Uma bomba foi desativada no Hotel Everest, em que estava Leonel Brizola, que voltara do exílio. Outra, no escritório do advogado de presos políticos Sobral Pinto. Explodiram bombas no Salgueiro, durante um comício da oposição, no carro do deputado Marcelo Cerqueira e na sede da Convergência Socialista. 

Parte dos militares não queria a abertura nem a desmobilização dos aparelhos de repressão. Em 1980, no dia 26 de abril, uma bomba explodiu numa loja que vendia ingressos para o show de 1.º de Maio. No dia 30, explodiu a primeira banca de jornal. Até setembro, dezenas de bancas de jornal explodiram em São Paulo, Brasília, Rio, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e Belém. Em 23 de maio, uma bomba destruiu a redação de BH do jornal da imprensa nanica Em Tempo. Em 27 de junho, uma bomba explodiu no Sindicato dos Jornalistas em BH. Duas bombas explodiram na sede do jornal Hora do Povo, no dia 30, no Rio. No dia 11 de agosto, foi encontrada uma bomba no Tuca, teatro da PUC-SP. No dia seguinte, uma bomba feriu 11 estudantes na cantina do Colégio Social da Bahia.

Em setembro, desarmaram uma bomba na Lapa, e, no dia seguinte, explodiram outras duas bombas: uma feriu duas pessoas num bar de Pinheiros. Em novembro, três bombas explodiram em supermercados do Rio. Outra na Livraria Jinkings, a mais importante de Belém, da família do ex-deputado Raimundo Jinkings. Dias depois, uma bomba incendiária destruiu o carro do filho dele. Em 1981, atentado à bomba num ônibus na Cidade Universitária do Rio, no relógio público instalado no Humaitá, no tradicional jornal carioca Tribuna da Imprensa, de Hélio Fernandes, lacerdista que virou um crítico sagaz do regime militar. Em abril, bomba na casa do deputado Marcelo Cerqueira. Um dia depois, bomba na Gráfica Americana, no Rio. Até o histórico dia 30 de abril de 1981, no Riocentro, quando elas pararam.

O sargento Rosário e o capitão Machado eram do DOI-Codi do Rio de Janeiro. Eram então militares do próprio Exército que boicotavam a redemocratização que ele mesmo promovia. Tais crimes foram cometidos depois de 1979, portanto, não acobertados pela Lei da Anistia. Ninguém foi preso. Ninguém será. No Brasil, a violência, quando é do Estado, é atenuada. Deveria ser agravada.

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