PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Namorado IA é moda na China: se amar nos torna inseguros, o amor robótico já vem na configuração

Pode-se deixá-lo ajustado para que tenha um ciuminho saudável, uma vozinha sussurrada, mas que seja saudável como um número

PUBLICIDADE

Foto do author Marcelo Rubens Paiva

Namorado IA é a nova onda na China. Namorado fake, criado por um aplicativo com o rosto (avatar) e a voz que agradam à cliente, que só a elogia, que é afável, gentil, educado, engraçado, romântico e, principalmente, que não discorde dela, gerido pela inteligência artificial, torna sapo em príncipe instantaneamente.

Um elemento do casal quer viajar para a praia, o outro, para a montanha. Um quer ir ao cinema, o outro quer ficar vendo TV. Um prefere cerveja, o outro, vinho, um quer abrir o relacionamento, o outro, monogâmico. Melhor namorar um robô. Foto: Gorodenkoff - stock.adobe.com

PUBLICIDADE

O maior legado das redes sociais foi envelopar cada usuário em sua bolha, isolá-lo do mundo real e criar uma satisfação algorítmica em conviver apenas com quem concorda com ele. De bloqueio em bloqueio, evitando grupos com debates discordantes, recebendo notificações selecionadas que apetecem seu apetite único e exclusivo, o indivíduo vive em um mundo paralelo com a ilusão de que não existem contrários. Homens, mulheres, trans dão trabalho. Têm ciúmes, mau humor, manias, são exigentes, esquecem datas importantes, podem ser violentos, abusadores, passar micróbios, vírus. A maioria requer exclusividade. Namorar requer uma dedicação que o mundo atual não comporta.

Humanos dão trabalho e têm cheiros, mau hálito, hábitos. Começar a conviver com alguém que não se sabe direito quem é, já que nos primeiros encontros parece ter habilidades de qualquer garoto ou garota, que só no convívio começa a demonstrar suas sombras, medos, paranoias, implicâncias, não é nada conveniente na dinâmica do mundo de hoje.

Um elemento do casal quer viajar para a praia, o outro, para a montanha. Um quer ir ao cinema, o outro quer ficar vendo TV. Um é intolerante a glúten, o outro, à lactose, um não gosta de sushi, o outro, de sashimi, um é vegano, o outro vegetariano, um prefere cerveja, o outro, vinho, um tem ciúmes, o outro tem de mentir que não tomou café com o ex, que virou amigo, um quer TV na sala, o outro quer ler, um que ir de bike, o outro, de Uber, um é agressivo com garçons, o outro tem de se desculpar, um quer abrir o relacionamento, o outro, monogâmico. Melhor namorar um robô.

E se apaixonar é uma doença, torna qualquer um inseguro e distraído, o amor robótico já vem na configuração. Pode-se até ajustar a intensidade dele. Pode-se deixá-lo ajustado para que tenha um ciuminho saudável, uma vozinha sussurrada, mas que durma quando a clientela dorme, não toma ansiolíticos, antidepressivos, probióticos, remédios de colesterol. Que seja saudável como um número.

Publicidade

Sexo? Pele? Toque? Beijo? Bem, a esperar que a empresa lance logo os apetrechos que possam ser carregados por um cabo mini-USB e possam fisicamente satisfazer esse detalhe de um relacionamento, cada vez mais incompatível com o mundo de hoje: o tesão.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva

É escritor, dramaturgo e autor de 'Feliz Ano Velho', entre outros

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.