Tem uma expressão, gagner du malheur, afundar na desgraça, que no dialeto normando quer dizer ficar louco e infeliz para sempre depois de ter vivido uma situação de pavor.
A francesa Annie Ernaux (1940) se lembra de ter usado essa frase quando tinha 11 anos, no dia 15 de junho de 1952. Era um domingo. Ela tinha ido à missa, como sempre fazia, tinha comprado doces na volta para casa, tinha trocado a roupa de passeio por uma mais simples, e sentado para almoçar com o pai e a mãe. Houve uma discussão durante a refeição. A mãe seguia de mau humor enquanto arrumava a minúscula cozinha. O pai começa a tremer, arrasta a mulher para outro lugar. A menina se joga na cama e esconde a cabeça embaixo do travesseiro.
“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”, ela escreve no início de A Vergonha – livro de 1997 que chegou ao Brasil em setembro, mais ou menos junto com o anúncio de sua vinda à Flip e dias antes de ela ganhar o Nobel de Literatura.
Annie Ernaux é considerada um pioneira da autoficção, embora prefira o termo “autossociobiografia”, já que mistura história e sociologia às suas memórias. Neste livro, ela parte deste episódio de violência doméstica – a tentativa de seu pai de matar a sua mãe na sua frente – para falar sobre como o sentimento descoberto naquele momento, a vergonha, a acompanharia depois, e para sempre (por esse e outros motivos).
Ao escrever, ela reflete sobre a escrita deste fato que, só mais adiante, ela entende como sendo um livro. “Escrevo essa cena pela primeira vez. Até hoje, me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo. Talvez o de não poder escrever mais depois.”
O castigo não vem, tampouco o alívio. “Há vários dias, convivo com a cena daquele domingo de junho. Quando a escrevi, eu a vi nitidamente, em cores, formas definidas, e ouvi as vozes. Agora, ela ficou acinzentada, incoerente e muda, como um filme a que assistimos numa televisão sem antena. O fato de eu ter traduzido essa cena em palavras não alterou em nada sua ausência de significados.”
Neste processo de escrita, ela questiona se não teria revelado tudo de cara, e diz que não: contou só o “fato bruto”. Seu objetivo se torna, então “chacoalhar essa cena, há tantos anos congelada, para arrancar de dentro de mim seu caráter sagrado de ícone (demonstrado, por exemplo, na minha crença de que é ela que me leva a escrever, de que ela está no fundo dos meus livros)”. E a seguimos nessa viagem ao fim da infância, a uma França miserável, às suas descobertas mais dolorosas.
A Vergonha
Autora: Annie Ernaux
Editora: Fósforo (88 págs.; R$ 54,90; R$ 32,90)
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