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Coluna quinzenal da jornalista Maria Fernanda Rodrigues com dicas de leitura

Opinião | ‘Coração Apertado’ é livro angustiante como um sonho estranho do qual não conseguimos sair

Lançado originalmente pela Cosac Naify, romance de Marie NDiaye é narrado por uma professora que passa a ser hostilizada depois que o marido aparece ferido. Ela não compreende como chegaram àquela situação

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues

Uma névoa densa encobre Bordeaux e confunde Nadia, a narradora de Coração Apertado, que se perde. E ela se perde não apenas porque a rua por onde ela sempre caminhou de repente passa a ser mais longa do que era, ou porque as coisas parecem estar fora de lugar. Nadia se perde em si, na loucura em que sua vida se transformou desde o dia em que ela voltou para casa com o marido, Ange, e ele escondia, atrás de sua pasta de professor, um grande ferimento em seu abdome.

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É com esta cena, o casal de professores voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, que a escritora francesa Marie NDiaye, vencedora do Goncourt, abre este romance angustiante que li pela primeira vez na edição da Cosac Naify em 2010. A obra nunca mais tinha sido reeditada até que agora saiu uma versão em audiolivro. Juntei o pouco tempo para leitura, as idas e vindas pelo trânsito de São Paulo e a memória da impressão que aquela primeira leitura me causou e, relevando uma primeira resistência em ouvir em vez de ler, ouvi.

E ouvi as quase oito horas ao longo de dias, devagar, me perdendo também nessa história que nos chega apenas pela voz de Nadia – narrada pela atriz Alice Carvalho. Ela não sabe de nada, e nos arrasta para este lugar estranho de um romance que avança lento, econômico nas respostas às perguntas que ela se faz – e que nós fazemos. Eu não me lembrava disso. E enquanto ouvia me angustiava por não lembrar, na verdade, de nada. Só de que tinha gostado muito (e que recomendei e emprestei meu livro tantas vezes que ele, claro, nunca mais voltou).

História se passa em Bordeaux, uma cidade familiar que passa a ser estranha para a protagonista Foto: Cybelatis/Adobe Stock

Embarquei de novo na história, então, sem saber por que aquele homem foi ferido, por que ela está sendo hostilizada, por que ela não está entendendo nada, por que deixaram um estranho cuidar de Ange, e o que esse estranho quer.

Estamos no escuro com esta mulher que rejeita sua origem humilde e que ascendeu socialmente ao abandonar marido e filho e se casar com este professor. Que olha tudo e todos de cima, julga, se acha diferente e despreza este vizinho que a cidade toda celebra – pela pobreza de sua figura.

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Nadia consegue escapar de um labirinto para entrar em outro. Sai daquela casa, do cheiro podre da carne do marido que definha misturado ao cheiro da comida boa que o vizinho prepara. Respira. Algo, porém, começa a crescer dentro dela. Fantasmas do passado cruzam seu caminho. Ou eles estiveram sempre ali? A voz acolhedora da mãe abandonada, a cantiga da infância. Para onde ir? Como se reconciliar com as feridas abertas, com o estranho que envolve as entranhas? Como se reorganizar diante do caos? Nadia tenta.

Capa do audiolivro Coração Apertado, de Marie NDiaye na voz de Alice Carvalho Foto: Reprodução/Supersônica

Coração Apertado

  • Autora: Marie NDiaye
  • Tradução: Paulo Neves
  • Voz: Alice Carvalho
  • Audiolivro: Supersônica (7h56; R$ 53)
Opinião por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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