Esta é uma coluna sobre um livro não escrito, sobre histórias enterradas com os nossos mortos e sobre as que ganhamos quando paramos para ouvir o outro.
Há alguns anos, atendi o telefone na redação e uma senhora, chateada com algumas notícias que tinha lido sobre um parente distante, queria contar a versão dela de tudo. Na verdade, a versão de uma tia dela, que já tinha morrido.
Era uma história difícil de entender, e havia cadernos manuscritos. Combinei de encontrá-la para ver os originais e tentar descobrir se o que ela achou esquecido numa mala antiga era uma curiosa anedota familiar ou algo que poderia ter algum valor histórico – ou, mesmo que não tivesse, se ao menos poderia interessar aos leitores.
No dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. Walinda da Cunha Vieira, a tia-avó de Regina Coeli Vieira Barini – a senhora que me ligou naquela manhã de 2019 –, tinha então 15 anos e testemunhou os efeitos da tragédia que tirou a vida de seu tio, o autor de Os Sertões. 50 anos depois, ela abriu um caderno novo e escreveu suas memórias daquele dia.
Lendo seus manuscritos com letra caprichada em páginas amareladas pelas seis décadas em que o caderno ficou perdido e depois guardado em um apartamento na Aclimação, sabemos como a família tinha passado o dia do fatídico duelo e como a notícia chegou até a casa dos Cunhas no dia seguinte.
Com a ajuda de Walinda, nos vemos na sala daquela casa em São Carlos, no interior de São Paulo, acompanhamos a movimentação e a reação de sua mãe, a irmã de Euclides, e de seu avô, que chorava baixinho e morreria um mês depois. No caderno, havia outro texto – o registro de um encontro com Euclides na Páscoa do ano anterior à sua morte, no sítio, quando ela se aborreceu com ele ao ser chamada de cigana.
Regina estava doente e quis tirar os cadernos do baú para ajudar a preservar uma memória que foi muito importante para aquela tia querida, num momento em que os herdeiros de Dilermando buscavam justiça histórica. E para que essa história não se perdesse – como tantas outras que ela ouviu, sem se dar conta da importância e sem registrar, e que Walinda tampouco colocou no papel. São passagens que não mudam o curso da História, ou de uma biografia, mas mostram outros ângulos – e afetos.
Regina morreu dois anos depois de contarmos sobre esses cadernos nas páginas do Estadão (leia aqui). Soube agora, e lembrei desse novelo que desfiamos para tentar reconstruir essa memória.