Quando Marina Colasanti completou 80 anos, fiz uma longa entrevista com ela que me deixou particularmente feliz. Eu já tinha falado com ela outras vezes - ela nunca negou um pedido de entrevista, fosse para falar sobre um livro dela, para comentar algum assunto do meio literário ou para revelar histórias saborosas sobre amigos com quem conviveu - como Clarice Lispector.
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Naquele setembro de 2017 pré-pandemia, Marina estava alegre. Na foto feita pelo Estadão em sua cobertura no Rio, ela olhava para o sol. Na conversa que tivemos por telefone, ela olhava para frente. Tinha planos de escrever novos livros. Não tinha saudade de outros tempos. Gostava da sua idade. Não tinha medo de morrer.
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“As filhas estão criadas. Quando temos filho pequeno ou desestabilizado, não podemos morrer. Eu posso, sem medo”, ela disse.
Sou mãe, tenho filho pequeno. Quando o avião chacoalha além da conta ou me vejo de alguma forma em perigo, me lembro de suas palavras: não posso morrer.
Mas os anos que se seguiram àquela entrevista foram duros. Veio a pandemia e, um ano depois, Marina enterrou sua primeira filha. Fabiana morreu por causa de um câncer rápido e agressivo. Quando vimos Marina de novo, ela já era outra.
Em 2023, a FTD lançou um livro-homenagem à escritora, A Disponibilidade da Alma, com uma seleção de crônicas, poemas e esta entrevista que o Estadão publicou nos seus 80 anos. Voltamos a conversar. Desta vez, a pedido dela, por e-mail. Marina estava econômica nas palavras. Sentia todos os golpes da vida - a despedida da filha, o companheiro de tantas histórias, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, ainda ali, mas já distante, com Alzheimer desde 2017.
“A morte da minha filha foi um choque, seria um bom motivo para desistir. Mas minha outra filha, recém-parida, e ele, meu neto em si, uma surpresa, também são bons motivos para continuar”, ela disse, avaliando aqueles últimos tempos.
Marina sentia tudo, e seguia. Sempre preferiu o presente. Ainda tinha vontade de escrever uma história - a do medo. Tinha muito respeito pelas crianças, seus principais leitores. Perguntei o que ainda importava. Ela respondeu:
“Confesso que envelhecer não é das coisas mais fáceis, é bonito, emocionante, faz parte da vida, mas têm sido muitas as despedidas. E nesse contexto, o que me resta, é a iminência preciosa do momento presente. Gosto de estar com amigos, os que ainda restam, de estar com minha filha, brincar com o meu neto, simplesmente olhar para ele, viajar para nosso sítio em Friburgo, ver as cerejeiras em flor. Acho que agora o que mais importa não tem forma, nem matéria: bem-estar, calor, amor, delicadeza e afetos bons”.
Foi sua última entrevista. Leia aqui.
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A delicadeza estava em tudo o que ela escrevia. Foram mais de 70 livros. Marina não fazia distinção entre escrever para criança ou escrever para adulto. Meu preferido é Minha Guerra Alheia, justamente quando ela, depois dos 70, se reencontra com a criança que foi - filha de italianos nascida na Eritreia em 1937, que brincou sobre os escombros da Segunda Guerra, que vagava pelo Parque Lage onde vivia sua tia e onde ela começou sua vida no Brasil, nos anos 1940. É ali, onde tudo começou, que amigos e familiares se despedem hoje de Marina Colasanti, que morreu aos 87 anos.