Maria Valéria Rezende evoca George Simmel, Julio Cortázar e Dom Sebastião na epígrafe de A Face Serena para preparar o leitor para seu contos e reafirmar que o destino é a morte, que ao fugir dela caminhamos ao seu encontro, e que não é preciso temer.
A morte, real ou simbólica, da pessoa, do indivíduo, de certezas, aparece de alguma forma nos 37 contos escritos por uma das melhores autoras brasileiras, freira missionária que rodou o planeta trabalhando com educação popular e autora de romances como Quarenta Dias (2014), Outros Cantos (2016), o meu preferido, e Carta à Rainha Louca (2019) – todos premiados e lançados pela Alfaguara.
Em A Face Serena, encontramos personagens típicos de sua obra – pessoas vivendo “pelas frestas”, dormindo em andaimes ou num canto qualquer de um mercado, caminhando pelos becos do morro ou pisando o solo ressecado do sertão. Homens, mulheres e crianças às voltas com a vida – com suas pequenas alegrias e esperanças e grandes dificuldades.
Chuva abre a coletânea, e não há floreio para narrar a dor de perder um filho: “Mal acabou de lançar a última pá de terra sobre a cova rasa do único filho, Cícero agarrou o saco de algodão em que já havia metido a certidão de nascimento, a outra muda de roupa e o par de sapatos de lona e foi-se. Sem dizer nada”, ela escreve.
Encerrando, o conto que dá nome ao livro. É a história de Benvinda, cujo olhar urgente era “dirigido ao horizonte, a um ponto desconhecido no futuro”, uma criança que sempre esperou por algo, e que então passou a buscar, sem temer a vida ou a morte, esse algo, uma vocação, uma missão, um novo olhar para o outro.
Muitos dos textos são atemporais. Em outros, Maria Valéria nos apresenta uma menininha de tempos passados (será que vivendo na Santos de sua infância e adolescência ou na chácara dos avós?). O quintal surge como convite à vida, tem as brincadeiras com os primos, o medo das noites, o amor, a caixa com pedaços de um passado, a figura do avô e o mundo que ele revelava e alimentava com suas histórias.
Seu Conto de Natal é tocante. O Muro talvez seja o melhor. Alegórico, distópico, ele mostra os instantes finais de uma primeira sociedade que será dividida por um muro, como parte de um projeto radical em nome de uma ideia de paz. É preciso escolher definitivamente um lado. A narradora acaba içada para o lado de dentro, entende que só o mundo de fora será preservado e já não sabe se o que viu “ainda existe ou se o mundo ainda está por nascer”. Há morte nos contos, mas, antes de tudo, deve haver vida.
A Face Serena
Autora: Maria Valéria Rezende
Editora: Penalux (158 págs.; R$ 45)
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