Alguns livros são muito bons enquanto estamos lendo, e perdem a força depois. Ou crescem com o tempo. Outros, mesmo bons, são esquecidos. Onde Pastam os Minotauros, um dos melhores que li em 2023, ficou. Lembro dele de vez em quando – e, agora, enquanto assisto à série Você é o Que Você Come.
A produção, disponível na Netflix, acompanha um experimento feito com gêmeos idênticos. Por um período, um deles segue uma dieta onívora e o outro, vegana. O romance de Joca Reiners Terron não prega nada, não discute alimentação, e no entanto é para lá que volto.
Tudo se passa na região centro-oeste, numa paisagem desértica – que parece distópica, mas é realista. “A poeira do Mato Grosso tem a mesma cor de sangue coagulado”, diz o narrador. Pasto. Ganância. Morte. Miséria. Três amigos, Cão, Crente e Lucy, trabalham num matadouro que está se adaptando ao abate religioso e à crescente demanda por carne halal.
É a última segunda-feira de um ano de pandemia. Dentro, funcionários miseráveis que passam o dia diante de carne e não têm o que comer, e que serão dispensados na virada do ano para dar lugar aos muçulmanos. Fora, moradores do distrito se aglomeram à espera de ossos – cada vez mais escassos porque estão sendo usados para fazer ração de cachorro.
Existe uma tensão no ar. A empresa vai receber a inspeção de autoridades israelenses, já que os donos também querem, em outra área do local, produzir carne kosher. E também porque os três amigos, além de Ahmed, um palestino cuja família havia sido assassinada por forças israelenses, planejam algo. Detalhe: o livro foi lançado dois meses antes do acirramento dos conflitos no Oriente Médio.
A história vai e volta no tempo, para um passado recente ou remoto, mas é quase toda concentrada em menos de 24 horas. A escalada é alucinante.
Joca usa um verso de Drummond como epígrafe: “E ficam tristes/e no rastro da tristeza chegam à crueldade”. A crueldade vem de todos os lados. É difícil sair deste labirinto de sangue, dor e injustiça. E daquele matadouro-labirinto.
Onde Pastam os Minotauros é forte, brutal. Ele não conta uma história bonita – e sua beleza está também nisso. Uma obra que faz um contraponto ao culto ao “eu” que invade a literatura contemporânea. Um livro incômodo. Porque, usando uma expressão do narrador, “nisso estamos”. E estamos juntos.
Talvez você passe a olhar de outra forma para os bifes embalados em isopor e plástico no mercado. Talvez perceba seu privilégio. Ou passe a se preocupar com a procedência do que você come. Por você, pelos animais, pelo mundo.
Onde Pastam os Minotauros
- Autor: Joca Reiners Terron
- Editora: Todavia (184 págs.; R$ 69,90; R$ 34,90)
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